Por: Pedro Franco
Há algum tempo atrás, mais ou menos na mesma época que terminei meu mestrado em história intelectual na PUC-Rio, comecei a tentar entender o motivo por trás da quase completa ausência de perspectivas de direita dentro do meio acadêmico. Comecei, é claro, perguntando para os próprios membros do meio acadêmico, e recebi respostas bastante variadas.
Como era de se esperar, essas respostas se agrupavam mais ou menos por afinidade política. Pessoas de esquerda muitas vezes diziam que faltava à direita produzir trabalhos de qualidade para serem aceitos na comunidade acadêmica – ou seja, conservadores e liberais não teriam a mesma aptidão para a carreira acadêmica quanto progressistas. Pessoas de esquerda diriam também que é esperado que pessoas se tornem progressistas ao longo da trajetória acadêmica pois a educação superior inevitavelmente os conscientizariam sobre problemas sociais diversos e que isso os levaria para a esquerda – ou seja, pessoas de direita seriam naturalmente convertidas à esquerda por meio do estudo acadêmico.
Pessoas de direita, por outro lado, normalmente dariam sua própria versão da hipótese da conversão: ao invés de ‘conscientização’, a educação superior seria um ambiente de intensa doutrinação e pressão social por parte da maioria progressista, o que também levaria pessoas para a esquerda ao longo da sua trajetória acadêmica. Como era de se esperar, direitistas no geral também rejeitam a hipótese da inépcia e afirmam que eles na verdade são alvos constantes de preconceito e perseguição na universidade. Essa afirmação muitas vezes também vinha acompanhada de verdadeiras histórias de terror exemplificando o pesadelo que é ser de direita (ou às vezes até mesmo de centro ou centro-direita) na universidade – principalmente nos departamentos de ciências sociais e humanas. Embora muitos entre a esquerda aleguem que tais casos de perseguição são “apenas anedotas” ou “casos isolados”, há um certo senso comum de que a universidade não é um ambiente particularmente amigável à direita política.
Mesmo assim, já encontrei muitas pessoas dentro do meio acadêmico que negam que a direita sofra preconceito na universidade. Já encontrei muitas que negam até mesmo que haja uma desproporção numérica entre esquerda e direita nos departamentos de ciências sociais e humanas. Conforme fui coletando esses relatos e opiniões incongruentes, fui chegando à conclusão de que boa parte da incongruência se dava pelo fato de que nunca ninguém de dentro da academia buscou verificar através de estudos sistemáticos nenhuma das hipóteses que circulam sobre o assunto. Em outras palavras, simplesmente não existe trabalho acadêmico sobre a relação entre direita e esquerda na universidade brasileira. Isso dá liberdade para qualquer um adotar a tese que quiser e alegar que não existe “prova científica” do contrário.
Comecei então a imaginar os métodos que precisaria empregar e os dados que precisaria coletar para se estabelecer um pouco mais de consenso objetivo sobre esse assunto. Felizmente, não tive que ser tão imaginativo assim. Nos EUA já se fazem surveys buscando traçar o perfil da comunidade acadêmica há décadas, e logicamente se buscou também explicações para as discrepâncias e desproporções observada entre perfis políticos. Feita uma revisão das discussões especializadas sobre o assunto por lá, adquiri uma noção relativamente abrangente sobre os diferentes dados que são mobilizados para tentar explicar a sub-representação de pessoas de direita no meio acadêmico. Meu relatório completo sobre como as hipóteses mencionadas acima foram investigadas nos EUA pode ser encontrado aqui.
É um trabalho difícil de resumir em um espaço curto pois os dados reunidos ramificam em muitas discussões paralelas. Não à toa o relatório acabou com tantas páginas, e cada vez que releio fico querendo incluir mais. Pretendo expor nos textos dessa biblioteca algumas das principais descobertas que fiz ao longo dessa investigação, mas posso fazer aqui alguns comentários gerais.
Primeiro, algo que pode ou não surpreender: continua difícil dar uma resposta que agrade a todos sobre o porquê da sub-representação da direita na universidade. Não só porque as pessoas gostam de respostas curtas, mas porque respostas em um assunto como esse normalmente implicam um plano de ação (e certas vezes o plano de ação implicado não é o plano de ação que as pessoas estão investidas). Enfim, são dois aspectos do problema que não combinam muito bem, pois respostas curtas muitas vezes motivam ações mal pensadas.
Problemas sociais complexos como a sub-representação de grupos distintos em certos ambientes, no entanto, normalmente têm explicações complexas e multicausais. É preciso lembrar disso para evitar uma reação comum tanto entre conservadores quanto outras minorias subrepresentadas, que é a de tratar evidências de um fator moralmente condenável do problema (discriminação) como sinal de que aquilo é o único fator do problema que importa. Me ocorre aqui a confusão em que se encontrou James Damore, um bem-intencionado funcionário da Google que, apesar de jamais ter negado que mulheres sofrem preconceito no local de trabalho, foi massacrado por ter escrito um memorando no qual buscava aprimorar os programas de inclusão da sua empresa levando em conta outros fatores, além do preconceito, que ajudam a explicar a sub-representação de mulheres no seu meio.
Enfrentei reações análogas vindo de conservadores quando procurei explicar que sim, conservadores sofrem preconceito na universidade, que sim, isso é injusto, mas que também há outros fatores a serem levados em conta nas suas estratégias para promover maior diversidade ideológica na educação superior. Dados coletados em universidades americanas apontam, por exemplo, que auto-seleção é um fator no mínimo tão relevante quanto discriminação anti-conservadora para explicar a sub-representação da direita na universidade. Afinal, encontramos severa desproporção entre direita e esquerda já na porta de entrada da carreira acadêmica, tanto no primeiro período da graduação em cursos de ciências sociais e humanas quanto nos processos seletivos do quadro docente. Isso sugere que, no geral, pessoas de direita simplesmente não estão optando por ingressar na carreira acadêmica.
Claro que há vários motivos que podem estar motivando essas escolhas. Um deles, inclusive, pode ser o próprio ambiente hostil que conservadores esperam encontrar na universidade. Afinal, depois de escutar tantas histórias de terror sobre o assunto, que conservador se submeteria ao tormento de construir décadas de carreira em um ambiente que o rejeito por princípio? Nesse sentido, ironicamente, os próprios conservadores podem estar contribuindo para a sua decrescente representatividade na universidade ao alardear seu sofrimento e aterrorizando potenciais acadêmicos conservadores. Não estou sugerindo aqui que conservadores devam se manter calados sobre os problemas que enfrentam no campus, mas caso eles realmente queiram aumentar sua representatividade na educação superior, talvez eles devam enfrentar o desafio de construir uma narrativa que torne a carreira universitária um pouco mais atraente para calouros conservadores.
Outra motivação para escolhas de carreira tem a ver com diferenças de personalidade entre grupos e indivíduos. Da mesma forma que certos traços de personalidade estão correlacionados a determinadas orientações políticas, esses mesmos traços de personalidade podem atrair para certos tipos de carreira também. Essa, no entanto, é uma área particularmente polêmica da discussão, e basta olhar novamente para o caso Damore para entender o motivo. Talvez nada em seu memorando tenha o colocado em tantos apuros quanto a tentativa de responder o quanto que diferenças de personalidade entre homens e mulheres afetam suas escolhas de carreira. Essa é, com certeza, uma discussão difícil de navegar, mas vale a tentativa pois os paralelos com a questão da escassez conservadora na universidade são úteis.
Quando olhamos para as inúmeras pesquisas tanto sobre diferenças de personalidade entre homens e mulheres quanto sobre diferenças de personalidade entre direitistas e esquerdistas, há várias distinções que precisamos aprender a fazer. A primeira é entre diferenças em nível populacional e diferenças em nível individual. Infelizmente, muitas pessoas que se envolvem em debates públicos não têm muito domínio de conceitos estatísticos, portanto quando escutam falar sobre diferenças estatísticas entre um grupo e outro imaginam que isso equivaleria a fazer (ou que justificaria fazer) generalizações sobre indivíduos pertencentes a esses grupos. Embora seja muito fácil cair nessa armadilha, vamos evitá-la aqui. Nesse caso não será tão difícil pois tanto quando falamos de direitistas/esquerdistas quanto quando falamos de homens/mulheres, estudos mostram que há muito mais semelhanças do que diferenças comportamentais entre eles, logo nenhuma pressuposição sobre a personalidade e comportamento de indivíduos pertencente a esses grupos é justificada.
De qualquer forma, há diferenças de personalidade que se apresentem em nível populacional que podem ajudar a explicar como esses grupos se distribuem em espaços sociais específicos. Outra armadilha perigosa aqui, no entanto, é assumir que a influência exercida por traços de personalidade nas posições ocupadas por esses grupos significa que esses grupos possuem mais ou menos aptidão para ocupar certas posições. A distinção que precisamos fazer para evitar essa armadilha é entre aptidão e interesse. Em termos de aptidão, estudos sugerem que não há diferenças significativas em capacidade cognitiva tanto entre homens e mulheres quanto entre direitistas e esquerdistas. Isso significa que, em termos de capacidade, qualquer um desses grupos teoricamente poderia obter representatividade equivalente em praticamente qualquer ofício do moderno mercado de trabalho que bem entendessem. Diferenças em traços de personalidade, no entanto, influenciam escolhas sobre quais mercados ocupar pois nem todas as ocupações despertam interesse igual em pessoas com temperamentos diferentes. Uma mulher com certeza pode ter a mesma ou até mais aptidão do que qualquer engenheiro, programador, ou banqueiro do sexo masculino, mas muitas vezes traços de personalidade mais prevalentes entre a população feminina podem, no agregado, influenciar a decisão de competir em outras áreas que estejam mais de acordo com seu temperamento.
Obviamente há milhões de qualificações a fazer nesta última frase. Uma delas é a de que as profissões mencionadas talvez não devessem ser consideradas profissões “não-femininas”. Outra: talvez a maneira como essas profissões recompensam comportamentos mais “masculinos” é arbitrária. Ainda outra: talvez essas ocupações possam criar estruturas internas que se adequem, atraiam, ou até mesmo tirem proveito de qualidades “femininas”. Há também, é claro, a discussão sobre o que é, afinal, o “masculino” e o “feminino” enquanto tal. Essas são todas discussões importantes e em andamento, mas não quero desviar demais do assunto. Por ora é interessante apenas sugerir a comparação entre a maneira como essas questões são tratadas por diferentes minorias em diferentes locais de trabalho – inclusive, é claro, pela a minoria conservadora dentro da universidade. (Pense sobre o que acontece, por exemplo, quanto trocamos as palavras ‘feminino’ e ‘masculino’ neste parágrafo por algo tipo ‘de direita’ e ‘de esquerda’).
Chegamos aqui a outra série de distinções exigida por essa discussão que está relacionada ao famoso debate nature vs nurture, que no campo sociológico se expressa no embate entre naturalismo e construtivismo. Para resumir, a questão gira em torno do quanto nossos comportamentos, personalidades, conceitos, percepções e instituições são inerentes e atreladas à natureza das coisas e o quanto elas são construídas através do hábito, socialização e outros processos culturais. Essa é talvez a distinção mais difícil de fazer entre as que sugeri até agora pois, de fato, maior parte da nossa realidade social ocorre através de uma interação extremamente complexa entre processos “naturais” e processos “culturais”. Só para tomar um exemplo, alguns estudos sugerem que diferenças de personalidade entre homens e mulheres se alteram com o tempo e entre culturas diferentes – embora, paradoxalmente, muitas vezes culturas mais igualitárias tendem a ampliar ao invés de diminuir essas diferenças. Não vou tentar aqui reduzir isso a algum tipo de fórmula que traduza de forma exata a interação entre natureza e cultura no que diz respeito a diferenças psicológicas entre os sexos, mas uma coisa é certa: embora tanto natureza quanto cultura exerçam alguma influência, nenhum dos dois exerce total controle sobre nosso comportamento. Reducionismo para qualquer um dos lados é perigoso. (Vale mencionar que as diferenças de personalidade entre direitistas e esquerdistas também varia entre culturas e depende de fatores históricos e contextuais).
Seja como for, é certamente verdade que diferenças marginais nas predisposições psicológicas de certos grupos podem acabar sendo amplificadas por processos culturais subsequentes. Isso se aplica mais diretamente ao tema central da nossa discussão no que diz respeito à forma como certas profissões são socialmente ‘tipificadas’. A profissão acadêmica, por exemplo, parece ter sido politicamente tipificada da mesma forma que certas profissões são tipificadas por gênero. Ou seja, da mesma forma que um homem pode não se sentir atraído por uma carreira em enfermagem por acreditar que não se trata de uma opção adequada ao gênero masculino, muitos conservadores podem achar que virar pesquisador ou professor universitário é “coisa de esquerdista”. Na medida em que cada vez mais conservadores optam por não ingressar na carreira acadêmica (algumas vezes até ostentando sua rejeição do meio como um badge of honor), a tipificação se reforça e afasta ainda mais conservadores da academia em um processo de espiral. Isso reforça tanto o preconceito do mainstream acadêmico em relação a conservadores quanto o preconceito dos conservadores em relação à carreira acadêmica. Aqui a decisão de se investir em determinada carreira já não se baseia tanto nas predisposições psicológicas e interesses vocacionais, mas em pressões sociais de segunda ordem – embora, certamente, continue havendo uma interação entre os dois fatores no resultado final. Seja como for, a lição aqui é: o fato de que homens e mulheres (ou direitistas e esquerdistas) possam ter interesses e personalidades diferentes não significa que devamos simplesmente aceitar que certas profissões jamais terão apelo para eles. Significa, no entanto, que essas profissões talvez tenham que adequar suas estruturas internas e estratégias de comunicação caso queiram produzir esse apelo. O fato da universidade ter muita dificuldade em se comunicar para além do círculo progressista, portanto, não apenas diminui o impacto e influência do seu trabalho mas também dificulta o recrutamento de colaboradores para além desse círculo. Por outro lado, o fato de conservadores alardearem o quanto o meio acadêmico não é lugar para a direita também pode ter efeito semelhante.
Enfim, esses são apenas alguns dos insights derivados da minha incursão nesse assunto. Como já falei, há inúmeras ramificações para se explorar e qualificações a se fazer, mas foquei nesses tópicos em particular para ilustrar uma característica interessante que notei nessa discussão: quando discutem a sua sub-representação na profissão acadêmica, pessoas de direita raramente comparam suas demandas por maior representatividade com demandas semelhantes feitas por outras minorias. Há, no entanto, muito o que aprender com os sucessos (e, é claro, com os fracassos) dos programas de inclusão voltados para essas minorias. Entre as lições está a de que, por mais que ambientes polarizados favoreçam explicações uni-causais que canalizem nossos ânimos em uma única direção, problemas complexos exigem diagnósticos com um pouco mais de nuance. Pessoas realmente interessadas em aumentar a representatividade da direita na universidade (ou de qualquer grupo que seja em qualquer ambiente que seja) fazem bem em rejeitar explicações reducionistas e uni-causais para o problema que buscam abordar. Caso contrário, elas arriscam contribuir mais para o problema do que para a solução.
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