Representações sinedóticas, a pirâmide da radicalização e outras questões de ótica

Por: Pedro Franco

Sinédoque |n. f. :: Do latim synecdŏche, por sua vez do grego συνεκδοχή, derivado de συνεκδέχομαι «compreender várias coisas conjuntamente») Figura de linguagem. Tropo retórico que consiste em compreender a parte pelo todo, o todo pela parte; o género pela espécie, a espécie pelo género, etc. Exemplo: “A Inglaterra está presente na reunião das Nações Unidas” para dizer que representantes do governo inglês estão presentes na reunião.

Representações sinedóticas

Existe uma prática bastante difundida (e um tanto quanto manjada) na era da polarização para quem quer cultivar uma imagem negativa de um adversário. Trata-se de pegar o pior e mais vergonhoso representante possível de um grupo e tratá-lo como representativo de todo o grupo. Movimentos abrangentes (seja a esquerda, a direita, o movimento feminista, o movimento armamentista, ou qualquer que seja seu inimigo favorito) normalmente contam com grandes massas de apoiadores, então nunca é muito difícil encontrar um ou outro indivíduo que preencha o requisito. Uma vez selecionado o espécimen que mais envergonha tal movimento, basta exibí-lo na praça e colocar o resto dos seus companheiros na desconfortável posição de ter que explicar como uma causa tão nobre poderia atrair tamanho energúmeno. “Olha como a esquerda pensa!” “Olha como a direita age!” Por selecionar uma parte do movimento e tratá-lo como o todo do movimento, vou chamar essa prática de representação sinedótica.

A representação sinedódica é muito conveniente para fins retóricos. Ela pode servir tanto para persuadir os outros quanto para persuadir a nós mesmos de que nossos oponentes são muito piores do que realmente são. De certa forma, podemos dizer então que a representação sinedótica é uma espécie de parente próximo da famosa falácia do espantalho, já que ela frequentemente nos desobriga a lidar com as versões mais fortes e articuladas dos nossos oponentes.

No entanto, apesar dos usos mais malandros dessa prática, tratá-la apenas como instrumento retórico pode ocultar dinâmicas sócio-políticas relevantes e que podem apontar estratégias mais produtivas de ação e comunicação política. Afinal, temos que reconhecer que muitas vezes algo de verdadeiro se esconde por trás da representação sinedódica: não é incomum que os elementos mais radicais e extremistas de um movimento, mesmo que em números pequenos, adquiram influência desmedida dentro dele. Para saber como lidar com as representações sinedóticas dos nossos debates atuais, portanto, vale primeiramente tentar entender como que minorias radicais adquirem influência dentro das suas comunidades hospedeiras.

 

A pirâmide da radicalização

Existe um modelo analítico que nos ajuda a entender a dinâmica sociocultural em questão. Trata-se da ‘pirâmide da radicalização’, um modelo desenvolvido originalmente para entender os fundamentos sociais e culturais do terrorismo, mas que pode ser adaptado para praticamente qualquer situação onde haja radicalismo, extremismo, ou ‘mau comportamento’ em geral embutido dentro de um movimento, organização, ou corpo social maior. Eu tive meu primeiro contato com esse modelo quando estudava casos de perseguição e preconceito contra pessoas de direita dentro da universidade, através de um artigo do psicólogo social Lee Jussim.

Jussim procurava explicar uma aparente contradição na discussão sobre perseguição ideológica nas universidades americanas: embora a imensa maioria dos conservadores sinta que a universidade é um ambiente hostil, apenas um grupo muito pequeno de alunos e professores dentro da universidade costuma se envolver ativamente em casos de perseguição ideológica contra conservadores. Tais casos inclusive são relativamente raros, se considerarmos o tamanho da comunidade acadêmica e o dia-a-dia normalmente pacato da vida universitária. Como explicar, portanto, a prevalente sensação de perseguição? Será que não haveria um certo exagero por parte dos conservadores? A pirâmide da radicalização nos ajuda a responder essa pergunta.

A imagem sugere: 1) uma minoria radical que comete atos de violência e assédio contra oponentes políticos; 2) um número ligeiramente maior de pessoas que não se envolvam diretamente com táticas violentas mas providenciam justificativas simbólicas para o uso dessas táticas; 3) um número ainda maior de pessoas que não apoiam táticas violentas mas simpatizam politicamente com muitos dos objetivos daqueles que as adotam; e 4) uma base majoritária de ‘não-envolvidos’.

No caso da perseguição ideológica nas universidades, Jussim diz que o que acontece é o seguinte: Atos de intimidação e violência são cometidos por um pequeno grupo de estudantes ou professores. Por serem comparativamente raros e realizados por um grupo numericamente pequeno, muitos dentro e fora da comunidade acadêmica dirão que esse comportamento não é representativo dessa comunidade como um todo. Para sustentar o argumento, apontam para o fato inegável de que a imensa maioria dos professores e alunos não passa os dias perseguindo seus colegas e que, realmente, a paz reina na maior parte da rotina universitária.

Acontece que o pequeno grupo de radicais normalmente conta com o apoio de um grupo maior que, embora não se envolva diretamente em tais atos, transmite símbolos justificativos que podem ser apropriados para sustentar tais atos. Um bom exemplo desse tipo de símbolo seria a “tolerância repressiva” de Herbert Marcuse, uma versão radicalizada do argumento de Karl Popper sobre o “paradoxo da tolerância”. Embora muitos não saberiam apontar diretamente essas fontes, o argumento em si é bastante difundido nas nossas universidades: a tolerância tem limite, pois se tolerarmos os intolerantes corremos o risco de que estes tomem o poder e eliminem por completo a possibilidade de uma sociedade tolerante. A diferença entre Popper e Marcuse, para simplificar, está na métrica usada para identificar os intolerantes que nós não deveríamos tolerar. Para Popper a intolerância é medida por ações (impedir por meio da força que alguém expresse suas ideias, por exemplo). Para Marcuse, a intolerância não é medida necessariamente por ações mas sim por qualquer obstáculo que se apresenta ao avanço do que ele considera uma “sociedade progressista”. Isso abre caminho para que qualquer ideia, argumento, ou até mesmo obras de arte que tratem o progressismo de maneira crítica possa ser taxada como ‘intolerante’, justificando então a sua repressão. É essa versão do argumento que impulsiona boa parte das tentativas de reprimir ideias e discussões por meio da força dentro da universidade. Muitos membros da comunidade acadêmica, embora não se envolvam diretamente nessas tentativas, são responsáveis por difundir o argumento da “tolerância repressiva”, e podemos então considerá-los apoiadores simbólicos de ações radicais.

Descendo mais um degrau na pirâmide, encontramos um grupo ainda maior: os simpatizantes. Esse grupo no geral discorda das táticas repressivas dos grupos radicais e rejeita os argumentos usados para justificá-las. No entanto, apesar disso, eles ainda se consideram parte do mesmo campo político que os radicais. São aqueles que, podemos dizer, discordam das táticas mas simpatizam com a causa. Consequentemente, eles também se consideram oponentes daqueles que foram vítimas do radicalismo, logo sua motivação para sair em defesa deles é pouca. Além disso, muitos deles sabem que pessoas que criticam as táticas de um movimento podem ser confundidas com oponentes desse movimento, logo se posicionar contra os radicais significa incorrer o risco de ser visto como um conservador e, talvez, até mesmo de se tornar o novo alvo dos radicais. Apesar das críticas que membros desse grupo possam vir a ter contra os radicais do seu campo ideológico, portanto, eles raramente irão pronunciar abertamente essas críticas. O grupo simpatizante não costuma então oferecer resistência significativa às demandas e influência de grupos que optam por táticas radicais, contribuindo também para o isolamento daqueles que foram vítimas do comportamento radical. Considerando que a maior parte da comunidade acadêmica possui inclinações progressistas, estamos falando aqui de um grupo potencialmente muito grande que assume essa posição quando conservadores são vítimas de comportamento radical dentro da universidade.

O grupo majoritário no modelo piramidal é composto pelos não-envolvidos. Esse estrato se refere a todos aqueles que, embora nem simpatizem com a causa nem concordem com as táticas da minoria radical, simplesmente não expressam opinião quanto ao seu comportamento. Seja por desinteresse ou por receio de atrair polêmica para si, esse grupo também evitará o desgaste de uma posição crítica ao radicalismo, e também não oferecerá grande resistência às suas demandas e influência.

Jussim argumenta que, embora o comportamento radical de fato venha de uma pequena minoria da comunidade acadêmica, a imensa maioria dela se posiciona em algum lugar na pirâmide descrita acima quando irrompe o radicalismo contra conservadores, o que justifica a caracterização da universidade como um ambiente hostil a conservadores.

 

Questões de ótica

O modelo nos ajuda a entender não somente como grupos radicais adquirem influência dentro de uma comunidade e impõem um clima hostil a dissidentes, mas também algumas questões de ótica que ajudam a explicar uma certa ‘crise de relações públicas’ que a universidade (e alguns movimentos políticos) enfrentam. Em suma, ele ajuda a entender como instituições podem se tornar suscetíveis às representações sinedóticas que descrevi no começo desse artigo. Por exemplo, quando alguém acusa a universidade de ser, como um todo, intolerante em relação a dissidentes ideológicos, em pouco adianta retrucar que a intolerância é infrequente e minoritária quando prevalece a dinâmica descrita pelo modelo piramidal. Na medida em que não há ações institucionais coordenadas entre a comunidade acadêmica para abordar abertamente o problema do radicalismo ideológico e sinalizar a preocupação da instituição em relação a isso, a dinâmica piramidal ajuda consolidar uma imagem da universidade inteira como um espaço de radicalismo e intolerância política. Seria algo como uma empresa tentando se defender contra acusações de machismo dizendo que apenas uma pequena minoria dos seus empregados homens são predadores sexuais, não se importando ou se pronunciando sobre como os graus variados de conivência do resto da empresa em relação a esse comportamento pode afetar a situação. (Claro que essa analogia só serve até certo ponto, mas a questão aqui é: essa empresa no mínimo teria grande dificuldade em afastar uma caracterização bastante negativa de como ela está lidando com o problema.)

Muitos movimentos políticos enfrentam dilemas parecidos. Quando percebemos que há radicais lutando pela mesma causa que nós, podemos ficar relutantes em denunciar suas ações por conta da simpatia que temos pelos nossos objetivos em comum. Isso, no entanto, não impedirá que nossos oponentes políticos os denunciem. Nossa relutância será vista então como conivência e servirá para que esses oponentes possam caracterizar o movimento inteiro do qual fazemos parte à luz desse radicalismo. Daí um dos motivos pelo qual Peter Boghossian e James Lindsay, em seu manual sobre Como Ter Conservas Impossíveis, nos aconselham a sempre reconhecer os radicais e extremistas do nosso lado da discussão. Mesmo que nós mesmos não sejamos radicais, nossos adversários sempre nos verão assim se não nos distanciarmos deles. Reconhecer que nossas posições, por mais nobres e defensáveis que sejam, também podem ser (e frequentemente são) defendidas por extremistas e radicais é o único jeito de nos precavermos contra representações sinedóticas da nossa causa. É também o único jeito de possibilitar o diálogo com o outro lado, já que ninguém se interessará muito pelo que você tem a dizer quando você é visto como um radical.

 

Mas não importa o que eu diga…

Uma resposta comum para esse tipo de conselho é que não importa como eu tente me apresentar, meu oponente sempre me verá como uma radical – um fascista ou um comunista ou o que for. Algumas observações cabem aqui. Primeiro que, sim, muitas pessoas realmente irão ver você como um radical pelo mero fato de você discordar delas. Via de regra, quanto mais perto do topo da pirâmide da radicalização uma pessoa está, mais provavelmente ela verá você como perto do topo também. Em outras palavras, representações sinedóticas são mais comuns entre radicais. Quanto mais afastado de você seu interlocutor estiver no espectro político, mais ele tenderá a olhar para os representantes mais radicais do seu lado como representativos do seu lado como um todo. Ou seja, quanto mais à direita seu interlocutor está, mais ele tenderá a ver todo esquerdista como um comunista – e quanto mais à esquerda seu interlocutor está, mais ele tenderá a ver todo direitista como um fascista. Podemos chamar isso de Regra da Simetria Ótica, ilustrada na figura abaixo.

Regra da simetria ótica: Quanto mais afastado de você seu interlocutor (IL) estiver no espectro político, mais ele tenderá a focar nos representantes mais radicais do seu lado como representativos do seu lado como um todo – consequentemente, mais ele tenderá a ver você como um radical.

No entanto, só porque algumas pessoas sempre verão você como um radical não significa que todas as pessoas vão ver você assim. Nesse ponto você pode refletir se não está fazendo sua própria representação sinedótica do outro lado do debate, isso é, julgando todos eles pelos piores exemplos deles.

Se o seu objetivo é passar uma mensagem que evite a percepção de que você faz parte dos radicais, outro esquema útil de se ter em mente é a chamada ‘regra 20-60-20’, muito corrente em cursos de liderança empresarial. Ela diz o seguinte: qualquer ideia nova que você propor provavelmente terá apoio imediato de 20% das pessoas, e reprovação imediata de outras 20%. Nesse primeiro momento, você tem então 60% de pessoas que não tomaram uma decisão imediatamente. Elas permanecem apoiadores (ou opositores) em potencial.

Muitos líderes cometem o erro de achar que eles só podem modular seu discurso para falar com os 20% de um extremo ou do outro, isso é, com apoiadores ou opositores. É um erro fácil de cometer porque os apoiadores e os opositores são sempre os primeiros a se expressar, às vezes passando a impressão de que são os únicos envolvidos no debate. O líder que conhece a regra dos 20-60-20 sabe, no entanto, que mesmo quando estamos falando com opositores radicais, nossa principal preocupação deve ser com os sinais que estamos mandando para os 60% de apoiadores (ou opositores) em potencial, e não tanto para aqueles que já tomaram sua decisão.

Regra 20-60-20: Aprovação e reprovação sempre se apresentam de maneira mais evidente a ideias novas, bloqueando nossa vista e minimizando a importância das pessoas que ainda precisamos convencer. Falar com as pessoas que já estão convencidas (20-20) como se estivéssemos falando com as que ainda não estão convencidas (60) é um jeito eficiente de modular nosso discurso e comportamento. Afinal, os 60% podem não estar falando muito, mas eles podem estar ouvindo mais atentamente do que qualquer um dos extremos.

Além da liderança empresarial, esse princípio é também um componente das estratégias utilizadas por militantes políticos do porte de Martin Luther King e Mahatma Gandhi. Esses líderes também pregavam que sempre devemos enfrentar mesmo os nossos opositores mais radicais tendo em vista a possibilidade de um diálogo. Conversar com radicais como se estivéssemos conversando com pessoas moderadas exige que modulemos nosso discurso e comportamento de forma que tenham apelo aos moderados do outro lado, que podem estar quietos agora mas, depois que perceberem que nosso lado também não é composto somente por radicais, podem se abrir para o diálogo.

Enfim, podemos tentar resumir os conceitos discutidos aqui com mais algumas orientações gerais. Reconhecendo que sempre teremos influência limitada sobre a percepção que os outros tem de nós, vamos começar primeiro por como podemos modular as percepções que nós temos dos outros. Quando estamos envolvidos em discussões controversas e polarizadas, é sempre tentador representar o outro lado da discussão pelo do pior e mais radical que ele tem a oferecer. Isso é ainda mais tentador quando os ‘moderados’ do outro lado se recusam a reconhecer os radicais entre eles e permitem assim que os radicais conquistem mais espaço e influência entre eles.
 
Tratar os moderados como se fossem radicais, no entanto, pode não ser a melhor estratégia. A começar porque isso provavelmente fará com que nós sejamos vistos como radicais, o que provocará reações defensivas e fazer com que os moderados do outro lado se fechem ainda mais. Aqui é útil lembrar que as pessoas costumam mudar de opinião com muito mais frequência por conta de atitudes do que por conta de argumentos. Se você quer que o outro lado reconheça e se distancie dos seus radicais, comece modelando esse comportamento: reconheça o radicalismo do qual o seu lado também é capaz. Mostre que você entende que boas ideias podem ser defendidas por meios repreensíveis. Isso aumentará a chance do seu interlocutor adotar essa mesma diferenciação.
 
Claro que essas orientações podem ser aplicadas de maneira diferente em situações diferentes. Para terminar com uma dica um pouco mais concreta que se aplica a praticamente qualquer situação, experimente o seguinte: De agora em diante, sempre que quiser criticar ações ou opiniões de um movimento ou campo ideológico qualquer, evite dizer coisas tipo “a esquerda” faz isso ou aquilo, “a direita” acredita nisso ou aquilo, “o feminismo” quer isso ou aquilo, e assim por diante. Em 99,9% das afirmações possíveis sobre esses movimentos, o mais útil e correto seria dizer algo tipo “alguns dentro da esquerda” fazem isso ou aquilo, “parte da direita” acredita nisso ou naquilo, “algumas pessoas que se dizem feministas” querem isso ou aquilo. Eu tendo a observar que esse tipo de afirmação gera atitudes muito menos defensivas, transmite uma atitude muito menos hostil e, de quebra, tende a representar muito melhor as nuances do mundo real. Na medida em que nos obrigamos a enxergar essas nuances, a tendência é que instigamos os outros a enxergá-las também.

 

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