Por: Musa Al-Gharbi
Texto original: “Potholes on the Road to Institutional Reform“
Comecei a trabalhar na Heterodox Academy no outono de 2016, mais ou menos um ano após a formação do grupo. Naquela época, a organização (tal como era) era um punhado de pessoas interessantes que se reuniam no escritório do Jon Haidt na NYU todas as semanas para conversar sobre assuntos atuais, ideias para postagens em blogs e publicações externas, e para se atualizar sobre os projetos em que os diversos membros da equipe estavam trabalhando.
As coisas mudaram rapidamente:
O resultado ‘surpresa‘ das eleições de 2016 – e o choque, horror e terror que muitos professores e alunos com tendência esquerdista sentiram depois – tornou a tarefa de se incentivar a diversidade ideológica muito mais desafiadora. É verdade que as eleições mostraram uma desconexão crescente nos Estados Unidos entre as elites altamente educadas e todas as outras pessoas. A necessidade de as instituições de ensino ressaltarem a diversidade de pontos de vista, a compreensão mútua e a discordância construtiva talvez nunca tenha sido maior. Mesmo assim, para muitos — naquele momento — a ideia de criar uma plataforma e se envolver educadamente e de boa fé com, digamos, visões conservadoras e cristãs… isso parecia muito a se pedir, muito para se suportar.
Exacerbando esse senso, foram coordenadas campanhas por atores alinhados com a direita para provocar estudantes sensíveis, convidando figuras provocadoras para o campus. Com muita frequência, os organizadores conseguiram as reações que procuravam — trazendo mais notoriedade e convites para esses palestrantes para outros campi. O cancelamento dos convites atingiu um nível recorde. Houve discussões de grande importância em Middlebury, Evergreen, Berkeley e outras escolas. Isso levou à grande polarização partidária com relação às percepções sobre faculdades e universidades. Houve um grande aumento nas demissões de docentes devido a questões relacionadas com falas políticas – frequentemente depois das caças às bruxas da Fox News contra professores acusados de corromper os jovens. Esse ciclo de provocações, reações exageradas e agravamento continuou por quase dois anos — culminando com o assassinato de Heather Heyer após os confrontos na UVA.
Reconhecemos que a Heterodox Academy precisava se tornar muito mais organizada, abordar esses desafios de forma muito mais sistemática e lidar com eles numa escala muito maior. Em janeiro de 2018, Deb Mashek foi contratada para ser a nossa diretora executiva inaugural. Sua primeira providência foi adicionar “órgãos” à organização. Nos tornamos uma 501c3. Começamos a monitorar as métricas para avaliar quantos associados temos e o nosso impacto. Fizemos pesquisas com os associados e visitas em diferentes tipos de instituições no país para ouvir dos vários interessados o que eles queriam ou precisavam de nós. Começamos a montar a equipe e expandir as nossas ferramentas, recursos e intervenções. Logo no início desse processo, fui nomeada para chefiar as comunicações da organização.
Durante meu tempo na HxA – especialmente meus quase dois anos nessa função –, fiquei surpresa com a coragem, compromisso e humildade intelectual de muitos acadêmicos, com a sua disposição de se envolver pacientemente e de boa fé, até mesmo com visões com as quais discordavam fortemente, sua disposição de mudar de ideia sobre coisas quando eram apresentados a argumentos convincentes e evidências, e muito mais. Trabalhando conosco e também por conta própria, os docentes nos EUA e fora dos EUA iniciaram colaborações em pesquisas, grupos de trabalho e eventos; desenvolveram inovações pedagógicas; associados buscaram formas de melhor integrar a heterodoxia em programas de cursos até anúncios de empregos, declarações de não-discriminação e diversidade, a forma como abordam o serviço institucional e a pedagogia; defenderam seus casos perante seus colegas e outras partes interessadas do setor acadêmico por meio de palestras públicas, publicações e engajamento nas redes sociais. E o progresso vem ocorrendo — tanto no contexto local como no meio mais amplo –— como resultado da sua iniciativa, bravura, muito trabalho e perseverança.
O envolvimento e aprendizado com esses colegas tem sido uma alegria e um privilégio. Sinto-me muito mais otimista com a situação da educação superior do que me sentia quando iniciei esse trabalho. Com certeza os desafios que as faculdades e as universidades enfrentam em relação a garantir que os alunos e docentes possam se expressar livremente e explorar ideias, que os processos de admissão, contratação e promoção sejam rigorosos, justos e tão inclusivos quanto possível, que a pesquisa e o ensino não sejam sistematicamente distorcidos pelos compromissos ideológicos e de identidade dos próprios docentes – essas não são questões pequenas. Como já indiquei em outro local, provavelmente essa será uma campanha bastante demorada. Mas estou confiante de que os docentes, administradores e alunos estarão à altura dos acontecimentos.
Portanto, é um sentimento misto estar me afastando do meu cotidiano de trabalho com a Heterodox Academy para trabalhar no meu próximo livro (explorando as formas como jornalistas e pesquisadores tentaram – e muitas vezes falharam – entender as eleições de 2016 e suas consequências) e continuar a cumprir minhas obrigações na Columbia University. Contudo, estou empolgada em poder entregar as chaves para minha excelente substituta nessa função, Cory Clark.
No meu último ensaio aqui para o futuro próximo, gostaria de fazer algumas observações sobre as armadilhas em que os defensores da diversidade de pontos de vista frequentemente caem e conselhos sobre como evitá-las.
Pule a Nostalgia
Geralmente os defensores da diversidade de pontos de vista estruturam a sua missão quase como uma variação de “tornar a academia grande novamente”. A dinâmica atual na educação superior, e especialmente entre os alunos contemporâneos, contrasta desfavoravelmente com os “bons e velhos tempos” quando as pessoas podiam supostamente pesquisar o que quisessem, como quisessem e dizer o que quisessem, sem muito medo das repercussões.
Muitas vezes fico imaginando quando, exatamente, foi isso: trabalhos sobre como os compromissos políticos e de identidade dos acadêmicos (e a homogeneidade entre eles) distorcem a pesquisa remontam a quase um século atrás – assim como os movimentos para combater os constantes ataques à diversidade de pontos de vista. Isso teve início com a fundação da AAUP em 1915 e se estendeu para muitas outras iniciativas que precederam a Heterodox Academy. Quase todas as estruturas e abordagens controversas que dominam as discussões da educação superior atualmente datam de décadas atrás. Resumindo, os “bons e velhos tempos” da educação superior eram quase mitológicos, na melhor das hipóteses.
Talvez uma parte da verdade seja que certas pessoas provavelmente se sentiam mais livres “naquela época” em alguns aspectos do que atualmente — em grande parte devido ao fato de que o corpo docente e discente costumava ser MUITO mais homogêneo no que diz respeito à raça, gênero, classe, sexualidade:
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- Com relação ao gênero, a coeducação não era amplamente difundida nos EUA até meados dos anos 60 e 70 (especialmente em escolas de elite). Apesar de a discriminação sexual ter se tornado ilegal depois da Lei dos Direitos Civis de 1964, até meados dos anos 70 não havia praticamente nenhuma proteção ou solução para as mulheres que estavam sendo assediadas sexualmente. Consequentemente, apesar de as mulheres serem há muito tempo a maioria da população dos EUA, elas não se tornaram a maioria dos graduados universitários até por volta de 1980. Apesar de a maioria entre os alunos ter continuado a crescer, as mulheres permanecem sub-representadas entre os docentes – especialmente entre os docentes a caminho da ‘tenure’.
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- Negros não eram amplamente admitidos nas universidades até os anos 70 (após a Lei dos Direitos Civis e Ação Afirmativa). Naquela época, menos de 4% dos afro-americanos tinham ao menos um diploma de bacharelado; atualmente esse número é cinco vezes maior (apesar de ser ainda significativamente menor do que os colegas brancos). Até hoje os afro-americanos permanecem imensamente sub-representados entre os docentes.
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- Apesar de estatisticamente estarem sobre-representados na academia atualmente, americanos LGBTQ não apareciam em grandes quantidades até os movimentos dos direitos dos gays dos anos 60 e 70. O conhecimento acadêmico explicitamente de gays não era um ‘assunto’ até os anos 90.
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- Ao controlar as mudanças no tamanho da população em geral, aproximadamente o dobro de americanos frequentam a faculdade atualmente quando comparado com as taxas de frequência até os anos 80. A maioria desses aumentos foram na classe trabalhadora e americanos pobres devido a grandes expansões de programas de empréstimos estudantis e subsídio federal Pell Grant de meados dos anos 60 até o final dos anos 70.
Consequentemente, até meados dos anos 80 ou início dos anos 90 (obs.: a última grande comoção sobre o politicamente correto ocorreu do meio para o fim dos anos 90), pessoas do grupo dominante provavelmente poderiam ter dito o que quisessem em relação à raça, gênero, sexualidade e classe sem medo — em parte porque as pessoas que poderiam ser ofendidas simplesmente não estavam presentes. E na medida em que estavam lá, eram tão poucos – e sua posição era tão precária – que eles não poderiam reagir muito. Agora esses grupos minoritários são maiores e estão mais confiantes em suas posições. Eles não precisam ficar aguentando ofensas da mesma maneira. E, então, não aguentam. No todo, acho que isso é bom — embora deva ser feito muito mais para ensinar os alunos a talvez se ofender menos em certas circunstâncias (por exemplo, mal- entendidos), para que continuem a se envolver de forma paciente, com caridade e construtivamente, apesar das ofensas, e dependam menos dos administradores para julgar as diferenças interpessoais, etc.
Em qualquer caso, quando pessoas de grupos historicamente marginalizados e sub-representados ouvem os outros (mais frequentemente, brancos mais velhos, especialmente homens) cheios de nostalgia sobre os “bons velhos tempos” quando podiam falar e fazer o que queriam — o que frequentemente ouvem (e não injustificadamente) é o desejo de uma época na qual pessoas como eles eram menos “presentes” em instituições de ensino superior. No entanto, a realidade é que as universidades permanecerão mais diversas no futuro previsível – ou tenderão ainda mais naquela direção à medida que o acesso à educação continua se expandindo e as distribuições demográficas dos EUA continuam evoluindo. Consequentemente, as tensões relativas à classe, gênero, sexualidade e raça não desaparecerão tão cedo. Todos terão que assumir mais responsabilidades do que nas décadas anteriores, pois as universidades em si estão mais heterogêneas.
Sim, isso dá trabalho. Pode criar ansiedade. Isso muitas vezes exige que a pessoa se expresse de forma mais pensada e precisa. Mas assim é a vida numa sociedade diversa e plural.
A Esquerda Não é o Problema
A Heterodox Academy não é um grupo direitista. Nunca fomos, nunca seremos. Existem alguns que acreditam que isso é um problema em vez de uma virtude. Eles argumentam que qualquer movimento, grupo ou instituição que não seja explicitamente direitista se tornará esquerdista com o tempo (uma ideia coloquialmente chamada de “A Primeira Lei de O’Sullivan”). Eles dizem que, ao entrar em contato com interessados acadêmicos, tais como administradores universitários, a Heterodox Academy foi efetivamente ‘capturada’. Em virtude de explorar as intersecções entre a diversidade ideológica e outras formas de diversidade — e defendendo uma visão mais abrangente da diversidade de pontos de vista em vez de apenas a diversidade política — nós ‘nos perdemos’.
Existem muitos problemas nessa linha de pensamento.
O primeiro é que já existe uma gama de instituições e movimentos que de fato estão tentando promover visões mundiais específicas. Os críticos são livres para aderir ou apoiá-las, como quiserem. Contudo, deve-se notar que muitos desses outros grupos existem há décadas – e não apenas a homogeneidade ideológica e o espírito provinciano continuaram; na verdade, aceleraram. Ou seja, o “método O’Sullivan” parece não ser especialmente efetivo. Pode até ser contraproducente na medida em que uma abordagem hostil aliena potenciais aliados e incentiva a oposição, ou a retórica hiperbólica leva mais conservadores a menosprezar a academia como uma causa perdida – exacerbando, assim, a deturpação ideológica com a qual esses críticos estão tão preocupados.
Uma contradição maior é que, em virtude do próprio problema que esses críticos estão ostensivamente tentando resolver, é praticamente impossível fazer qualquer mudança significativa nas instituições de ensino superior sem trabalhar com pessoas de esquerda e por meio de instituições dominadas pela esquerda. Considere que a maioria dos alunos tendem para a esquerda. Os professores tendem a estar muito à esquerda dos alunos. Os administradores tendem a estar ainda mais à esquerda do que os docentes (como Abrams explorou aqui). Falando de forma realista, não há futuro previsível no qual isso deixaria de ser o caso. Por exemplo, vamos supor que temos uma varinha mágica e que poderíamos instantaneamente:
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- Eliminar toda a discriminação injusta contra visões não esquerdistas, não seculares ou não esquisitas nas revisões por colegas, conselhos de revisão institucionais, comitês de contratação e promoção ou na admissão de graduados
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- Tornar todos os docentes e funcionários mais atentos às formas como os compromissos ideológicos e de identidade podem distorcer a pesquisa e o ensino
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- Estabelecer um envolvimento mais robusto e caridoso com o pensamento não secular, não WEIRD* e não esquerdista no conhecimento acadêmico e na sala de aula
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- Assegurar que todos os alunos que chegam sejam treinados em coisas como raciocínio fundamentado, viés de confirmação e como se envolver com as diferenças
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- Estabelecer proteções institucionais robustas para proteger a liberdade de consciência, de associação e de expressão contra atores internos e externos que perseguiriam os acadêmicos pelas suas visões ou pelo seu trabalho
Mesmo num cenário de fantasia, no qual todos esses objetivos fossem realizados instantaneamente, dadas as distribuições anteriores de ideologia entre os docentes, problemas de pipeline, dinâmicas culturais antigas e similares – a composição ideológica da academia provavelmente não se aproximaria da composição da sociedade em geral por um bom tempo. Gerações de acadêmicos. Para a HxA, isso seria bom. A nossa meta não é ter a academia espelhando perfeitamente a sociedade, estamos simplesmente tentando melhorar a qualidade e o impacto das pesquisas e do ensino. Acreditamos que a diversidade ideológica é instrumentalmente valiosa para isto (junto com outras formas de diversidade), mas não é algo que buscamos por si só. Então, em uma situação na qual as outras reformas descritas acima foram realizadas, provavelmente estaríamos contentes com qualquer distribuição ideológica que resultasse disso.
E, claro, não existe varinha mágica, nem existem atalhos fáceis, para alcançar os resultados descritos acima. Pelo contrário, precisamos persuadir os interessados acadêmicos a irem nessa direção — e muni-los com as habilidades, ferramentas, recursos e estruturas para tal. Não está claro como alguém poderia ser eficiente nessas tarefas colocando-se em explícita oposição justamente às pessoas que devem ser trazidas ‘a bordo’ (e em muitos casos, já estão a bordo. Como Jon Haidt disse, “Como a Heterodox Academy conseguiu ter tanto sucesso tão rapidamente? A resposta básica é: estamos empurrando portas abertas”. Menos de um quinto dos associados da HxA são conservadores; a grande maioria dos nossos associados são moderados e liberais preocupados com os problemas no conhecimento acadêmico, com o ensino e o clima nos campi, mas que anteriormente não tinham uma forma adequada de expressar ou agir em relação a essas questões… precisamente porque as iniciativas anteriores para lidar com esses problemas tentavam promover agendas políticas ou ideológicas específicas também.
Sendo franco: qualquer pessoa que pretende reformar a educação superior, mas passa seu tempo tentando debochar, caricaturar, vilipendiar ou desacreditar a esquerda – não leva a mudança a sério. Ela está privilegiando o exibicionismo moral em detrimento da eficácia. Ela está se envolvendo de forma niilista e, de fato, prejudicando a capacidade dos outros de progredir também.
A esquerda não é o problema. A homogeneidade é um problema. O espírito provinciano é um problema. O dogmatismo é um problema. E são problemas gerais, não problemas de esquerda. Num mundo onde a maioria dos alunos, docentes e administradores tiveram inclinação para o conservadorismo na mesma medida em que atualmente têm inclinação para o liberalismo, devemos antecipar praticamente as mesmas questões surgindo em relação a preconceitos, discriminação, censura, captura institucional, etc. (de fato, observamos exatamente isso em situações nas quais as situações são invertidas).
A meta, portanto, não deve ser defender a direita ou ser contra a esquerda (ou qualquer variação dessa abordagem), mas criar e implementar valores, políticas e práticas institucionais que impeçam as pessoas de estabelecer sua própria ideologia como uma ortodoxia e punir ou expulsar aqueles que discordam disso.
Faça o que Diz
Mais uma vez, no tempo em que passei com a HxA, fiquei desconcertado – absolutamente emocionado – com o compromisso dos associados de colocar os nossos ideais em prática, de transformar nossas aspirações em realidade. Contudo, também fiquei profundamente aflito e, às vezes, desanimado, pela falta de lucidez, imposição de padrões duplos — e, às vezes, aparente má-fé — entre tantos outros que ostensivamente se alinham com a Heterodox Academy e seus objetivos.
Por exemplo, vi muitas, muitas pessoas que condenam a cultura do vitimismo por um lado, mas se apresentam avidamente como vítimas em qualquer oportunidade; surgiram muitos espaços para as pessoas realizarem esse ritual. Já vi pessoas que reclamam da falta de liberdade acadêmica mudando de atitude e apoiando uma legislação que diminuiria ainda mais tal liberdade em nome do favorecimento de metas políticas. Já vi pessoas publicarem reclamações anônimas sobre outras pessoas que fazem reclamações anônimas. Já vi pessoas lamentando a cultura do cancelamento e depois celebrando ou se unindo contra professores que apresentam argumentos dos quais elas não gostam. Já vi pessoas que ridicularizam alunos ‘sensíveis’ ficarem totalmente desnorteadas quando elas mesmas foram criticadas – iniciando mobilizações contra assédio ou difamação, ameaçando processar, pedindo que os outros fossem punidos pelas suas instituições, tudo porque alguém teve a audácia de criticá-las.
Já vi muito tribalismo de pessoas que alegam não fazer parte de tribos. Já vi acadêmicos se apresentarem como se realmente tivessem transcendido o preconceito, o raciocínio motivado – mesmo havendo uma grande conclusão da literatura: a de que NINGUÉM está imune a, ou acima, dessas tendências. É por isso que criamos instituições. Como já comentei em outro local, existe uma analogia religiosa aqui: a pessoa hipócrita que, em virtude de saber que é pecadora, passa seus dias julgando aqueles que ainda não se reconhecem como pecadores – mesmo que suas próprias ações e seu estilo de vida não sejam condizentes com o evangelho que pregam. Ou seja, algumas pessoas se concentram tanto em analisar os outros que acabam se esquecendo da própria falibilidade. Elas elogiam falsamente a humildade intelectual e a mentalidade aberta, mesmo quando modelam a arrogância epistemológica e moral ou o espírito provinciano.
Apesar de talvez não ser aparente para as pessoas envolvidas nesses comportamentos, essa hipocrisia é óbvia para praticamente todas as outras pessoas. E isso faz com que muitos se perguntem, justamente, se toda essa conversa sobre a diversidade de pontos de vista, etc., é apenas um pretexto para tentar deslegitimar certas visões em favor de outras. E, para alguns, deve-se reconhecer, esse é, claramente, o caso.
O que (muitas) pessoas nesse espaço parecem priorizar é a condenação de críticas baseadas em identidade, pós-modernismo e a esquerda de forma mais ampla. Isto é, não estão particularmente interessadas em aprender com as visões das quais elas discordam – por exemplo, teorias críticas sobre feminismo, homossexualidade ou raça. Pelo contrário, querem usar o movimento pela diversidade de pontos de vista para incitar as pessoas contra tais visões. Simultaneamente, defendem suas próprias visões como casos de verdade óbvia e incontestável, jogadas à margem como resultado do politicamente correto (e nada mais) — frequentemente usando plataformas de grande visibilidade para reclamar de como as suas visões estão sendo silenciadas (apesar de este último fenômeno ser mais complexo, e menos irônico, do que possa parecer inicialmente).
É claro, os exemplos que descrevi acima não são características da maioria das pessoas no espaço da diversidade de pontos de vista. Mas são, entretanto, alarmantemente comuns. Lidar com esses tipos de casos, e a compreensível reação contra eles, foi, provavelmente, a parte menos prazerosa do meu trabalho na HxA.
Mas aqui deve-se reconhecer que alguma hipocrisia é inevitável. O que a Heterodox Academy e seus associados aspiram fazer é difícil e, em muitos sentidos, não natural. O tribalismo, a seleção discriminatória e o raciocínio motivado são nossas configurações padrão. Consequentemente, todos nós falhamos de tempos em tempos — e certamente eu também. O que é importante é evitar simplesmente negar essas falhas pelo fato de que ‘ninguém é perfeito’, mas, em vez disso, reconhecer e tentar aprender com as situações nas quais não conseguimos incorporar os nossos ideais – e tentar melhorar isso futuramente. É assim que as mudanças ocorrem, com esforço. Dia a dia. Projeto a projeto. Interação a interação. Se não estamos dispostos a ou somos incapazes de suportar essa carga mental, emocional e social, então não é sensato esperarmos que as outras pessoas façam o mesmo. Mas, quando lideramos dando o exemplo, isso pode inspirar os outros a seguir o mesmo caminho. Isso pode fazer com que os interlocutores respondam da mesma forma. Já vi isso em primeira mão, muitas vezes, com os nossos associados virando o jogo simplesmente ao fazer o que dizem. Muito mais importante do que argumentar em prol do livre questionamento, da diversidade de pontos de vista e da discordância construtiva é modelar esses valores. Mostre, não diga.
Desenhe uma Linha
Sou muçulmano. Uma retórica popular que costumo ouvir de islamofóbicos é que a maioria dos muçulmanos são secretamente, ou nem tão secretamente, simpatizantes do ISIS e al-Qaeda – que esses grupos terroristas refletem o verdadeiro caráter do Islã, tornando explícito o que, de outra forma, está implícito. Eles argumentam que, se não fosse esse o caso, os muçulmanos denunciariam constantemente esses grupos e suas ações.
Os muçulmanos, é claro, denunciam regularmente esses atos. Somos solidários às vítimas de ataques terroristas – quer tenham sido realizados por muçulmanos ou outros. No entanto, não fazemos isso na tentativa de aquietar aqueles que disseminam a narrativa descrita acima; isso seria uma tolice. Para começar, a maioria dessas pessoas não está fazendo uma declaração de boa-fé. As opiniões delas sobre o assunto são rígidas, e nenhuma quantidade de denúncias, etc., será satisfatória para elas – elas apenas continuariam a mudar as regras do jogo ou a mudar de assunto. Nossos objetivos, pelo contrário, são viver nossos valores, enfraquecer os terroristas (que matam principalmente outros muçulmanos) e ajudar aqueles que foram prejudicados por eles.
Por que estou falando disso aqui?
Muitas pessoas argumentam que o clamor pela diversidade de pontos de vista e pelo livre questionamento é, na essência, ‘um Cavalo de Troia’ para a supremacia branca, o patriarcado e outras agendas cínicas ou reacionárias. Como evidência dessa mudança, elas apontam um conjunto muito real de fenômenos:
Existem grupos que adotam a linguagem da diversidade de pontos de vista, livre questionamento, liberdade de expressão, etc., para promover uma agenda política específica — e que não demonstram nenhum interesse em se envolver de forma significativa ou caridosa (nem ao menos para aprender) com visões das quais discordam. Alguns ainda tentam censurar ou perseguir seus adversários políticos em nome da liberdade de expressão ou diversidade de pontos de vista – existe toda uma indústria de pessoas vigiando e informando sobre professores com essa finalidade. Existem pessoas que estão tentando promover agendas de ódio e usar argumentos de ‘liberdade de expressão’ como meio de conseguir plataformas e tentar recrutar alunos. Existem pessoas que estão claramente tentando incentivar guerras culturais com a finalidade de enriquecer e elevar seu perfil público (coloquialmente chamados de ‘vigaristas’ [grifters]) – da mesma forma que existem políticos que buscam capitalizar essas questões para conseguir apoio com a sua base.
Defensores da diversidade de pontos de vista e do livre questionamento precisam manter uma posição firme contra aqueles que procuram se apropriar da nossa retórica e da nossa causa para fins nocivos. Precisamos fazer isso, antes de mais nada, porque esses maus atores constituem uma ameaça muito real para o livre questionamento e para a diversidade de pontos de vista. Eles causam imensos danos e devem ser combatidos.
Em segundo lugar, temos que ser claros sobre o que apoiamos, o que somos – não para aquietar aqueles que são firmemente contra a causa, mas para ajudar os céticos ou os simpatizantes que estão em cima do muro a ter mais compreensão do que são os nossos ideais na prática (e o que eles não são) ou o que é, concretamente, que estamos tentando realizar. Até onde podemos ver, uma pluralidade do corpo docente e discente de fato está conosco na nossa missão e nos nossos valores. Contudo, também estão profundamente — e com toda a razão — preocupados com estes maus atores. Na medida em que não está claro se estamos alinhados com estes personagens, eles hesitarão em se alinhar conosco.
Por último, sabemos por meio de pesquisas em psicologia e sociologia do conhecimento que não basta apenas expor as pessoas a um ponto de vista diferente: a qualidade importa. Se as primeiras exposições a uma dada linha de pensamento — digamos, o conservadorismo — envolverem argumentos que são empiricamente duvidosos, mal fundamentados, etc., então a exposição será contraproducente. Isso reforçará seu preconceito contra conservadores e o valor do pensamento conservador — e reforçará (se e) como eles se envolvem com exemplos subsequentes daquela linha de pensamento. É, portanto, imperativo para aqueles afiliados com perspectivas sub-representadas, bem como aqueles que, de outra forma, buscariam reforçar tais perspectivas, fazer um trabalho de curadoria — promovendo os melhores exemplos e reconhecendo explicitamente exemplos de baixa qualidade como tal.
A diversidade de pontos de vista serve para nos ajudar a diferenciar melhor as abordagens boas das ruins, aquilo que é certo daquilo que é errado. Isto deve aprimorar o nosso rigor moral e intelectual. Que lugar melhor para demonstrar isso do que no que diz respeito àqueles que estão tentando se apropriar da nossa causa?