O que é polarização? Parte 2: É complicado

Por: Pedro Franco

Na primeira parte deste ensaio, discuti algumas das definições mais comuns que encontramos do termo ‘polarização’ na literatura especializada e alguns dos problemas relacionados a esses fenômenos. Também mencionei que nenhum desses conceitos deveria ser tomado como a definição correta e derradeira da tão-falada polarização. Fazer isso apenas reduziria nossa crise cívica a um dos seus aspectos, o que levaria a prescrições igualmente inadequadas para resolvê-la. 

Por exemplo: muitas vezes ouvimos que a polarização ‘nada mais é’ do que divergência de opinião e que, portanto, não deveríamos nos preocupar com ela tanto assim. Essa é, certamente, uma definição possível do termo – mas enquanto diagnóstico do mal que estamos procurando abordar, ele é evidentemente incompleto e inapropriado.

Reducionismos parecidos também ocorrem às vezes entre aqueles que, ao contrário, de fato reconhecem necessidade de ‘despolarizar’ a sociedade. Por exemplo: muitos veem a falta de civilidade prevalente nas nossas conversas políticas como manifestação quintessencial da polarização – e, a partir disso, enxergam a despolarização como nada mais que a promoção da gentileza e polidez. Aqui, novamente, temos um diagnóstico incompleto. Grosserias e impolidez de fato podem gerar mal-entendidos, afastar interlocutores em potencial e instigar animosidades – tudo isso pode alimentar as disfunções da nossa cultura cívica, é verdade. Mas civilidade definitivamente não é um valor inegociável. Canalhas polidos existem aos montes, e civilidade pode muito bem acobertar juízos profundamente equivocados. Além disso, seria injusto culpar pelos males da nossa cultura cívica aqueles que, perante os abusos e absurdos perpetrados diariamente pelas nossas elites políticas, deixam de lado sua polidez para expressar justa revolta. Há, portanto, casos em que exigir civilidade é demais, outros em que exigi-la é pouco, outros em que ela é bem-vinda e ainda outros em que ela se faz necessária. O que falta, portanto, talvez não seja tanto a civilidade por si só, mas a boa e velha sabedoria para saber a diferença entre esses casos.

Seja como for, o ponto que estou querendo enfatizar aqui é que muitas propostas de despolarização costumam tropeçar no primeiro passo quando definem a polarização apenas reduzindo a vasta conjunção de fatores gerando nossa crise cívica a apenas um de seus aspectos mais visíveis. Feito isso, elas se propõem a ‘revolver’ essa parte do problema e, consequentemente, acabam atraindo para si críticas e resistência daqueles que apontam (não sem razão) que esse problema que o projeto se propôs a resolver não é sempre, em todo caso que se manifesta, necessariamente um problema.

Pois bem, como podemos então definir a tão-falada polarização de modo que não se limite a aspectos circunstanciais e superficiais da crise cívica que o termo busca indicar, que capture algo próximo da sua verdadeira essência e que aponte caminhos propositivos para lidarmos com ela? Distinguir os vários conceitos que exploramos no texto anterior é apenas o primeiro passo. Mais importante que diferenciar esses vários fenômenos, no entanto, é traçar a relação entre eles saber identificar quando essas relações produzem ciclos viciosos que podem fugir do controle. Mencionei alguns desses ciclos viciosos no texto anterior. Aqui, vou tentar mapeá-los de forma mais explícita.

Ciclos, ciclones e supertempestades viciosas

Podemos começar observando um simples padrão psicológico-comportamental que subjaz muitos dos fenômenos que discutimos anteriormente: Uma pessoa que tem opiniões fortes sobre algum assunto político normalmente está sujeita a certo viés de confirmação, o que significa que ela naturalmente tende a gravitar em torno de informações e argumentos que confirmem suas opiniões. O consumo dessa informação tende, por sua vez, a reforçar ainda mais as opiniões previamente adotadas, o que tende a reforçar ainda mais a seletividade de informações, e por aí vai. Temos aí um ciclo simples de dois fatores, o qual exigiria algum esforço externo ou ruptura comportamental para reverter.

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Naturalmente, existem outros fatores que podem interagir nesse ciclo de modo a fortalecê-lo. Podemos incluir também a ansiedade em relação ao futuro que costuma ser gerada por fortes opiniões políticas. Essa ansiedade tende a aumentar o consumo de notícias políticas, o que gera ainda mais ansiedade. Ansiedade também tende a gerar aversão por complexidade, o que alimenta a preferência por coberturas simplistas que condensem assuntos complexos em uma narrativa facilmente digerível (normalmente reduzida em termos de dois lados conflitantes, um certo e outro errado). O consumo regular de narrativas simplistas com informações que confirmam nossas opiniões eventualmente chega a moldar redes neuronais no nosso cérebro, dificultando o processamento de informação que divirja da nossa narrativa favorita, gerando maior reatividade a informação desconfirmatória e maior atração a informação confirmatória.

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Como vemos, o ciclo vicioso já começa a se complicar, e revertê-lo exigirá intervenções em múltiplos fatores. Daí que Peter Coleman diz ser mais adequado descrever esses sistemas de auto-reforço multifatoriais não como meros ciclos viciosos, mas como ciclones viciosos. Hoje encontramos ciclones desse tipo agindo em diversas esferas sócio-ecológicas. Não terei como mapear exaustivamente cada um deles aqui, mas vale tentarmos explorarmos outras dessas esferas para começarmos a ter uma ideia melhor do tipo de problema que estamos lidando.

Tendo mapeado alguns padrões de auto-reforço na esfera intrapessoal, podemos agora tentar mapear parte do terreno interpessoal e falar de como percepções seletivas de informação podem ser reforçadas por padrões sociais e grupais. Mencionei alguns desses padrões na discussão sobre ‘bolhas’ sociais’ no ensaio anterior: a busca por círculos sociais politicamente semelhantes, o uso de opiniões políticas como marca de pertencimento e identidade grupal, incentivos sociais e psicológicos para se distanciar de visões políticas diferentes, crescente inaptidão em interagir com pessoas que pensam diferente – e por aí vai. Temos aí outro ciclone vicioso fortalecendo a tendência das pessoas se entrincheirarem em visões de mundo inflexíveis e em bolhas sociais cada vez mais afastadas e incomunicáveis.

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Em seguida, podemos tentar mapear o ciclone vicioso agindo na nossa ecologia digital, midiática e cultural que determina o fluxo de informação na sociedade mais ampla. Aqui podemos falar dos sistemas de incentivo da mídia, o viés ideológico e homogeneidade política prevalente em muitas redações, as manchetes ‘caça-cliques’, os algoritmos das redes sociais, a crescente desconfiança em relação a veículos tradicionais de mídia, a proliferação de ‘fake news’, a agressividade incentivada pelo anonimato e impessoalidade do mundo digital – e por aí vai.

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Não poderíamos deixar de fora, é claro, os ciclos viciosos assolando nossa política institucional. Aqui podemos incluir fatores como a falta de confiança popular nas instituições do estado, o nosso histórico de patrimonialismo e populismo, a corrupção endêmica do nosso sistema político, a impunidade que essa corrupção usufrui, a forma como isso incentiva demanda popular por políticos combativos e beligerantes, as tendências autoritárias das principais forças políticas hoje disputando o poder no país – assim como as medidas extremas adotados pelo outro lado para ‘defender’ a ‘democracia’ – e por aí vai.

Evidentemente, esses são mapas bastante rudimentares e estou deixando muitos fatores importantes de fora. Seja como for, podemos terminar o exercício observando que, mesmo em se tratando desses mapas incompletos, os ciclones que eles representam não existem à parte um do outro. A dinâmica psicológica intrapessoal do primeiro ciclone subjaz e fortalece a dinâmica interpessoal do segundo ciclone. Ambas fortalecem a dinâmica social e organizacional do terceiro ciclone, que por sua vez fortalece a dinâmica político-institucional do quarto ciclone. Essas relações fluem de baixo para cima e de cima para baixo, e os ciclos viciosos da nossa política institucional também acabam moldando e fortalecendo ciclos viciosos em diversas outras esferas. Se quisermos então mapear o encontro desses ciclones, então teríamos algo como a figura abaixo: não mais um ciclo vicioso ou um ciclone vicioso, mas um supertempestade viciosa. Não é de se surpreender que o autoreforço de tantos fatores de divisão social, recrudescimento ideológico e enrijecimento cognitivo acabe transformando nossas divergências de opinião em algo parecido com o que Peter Coleman chama de ‘psicose nacional’: duas realidades paralelas existindo no mesmo corpo social, irreconciliáveis e incomunicáveis.

Naturalmente, alguns dos elementos dessa supertempestade têm mais peso que outros – mas o diagrama nos ajuda a entender o motivo pelo qual não podemos tratar nenhum desses elementos como se fosse a causa derradeira e decisiva do nosso problema. Estamos lidando com algo que, na ciência da complexidade, leva o nome de sistema auto-organizável. É como se o sistema adquirisse vida própria: são tantos os ciclos viciosos reforçando uns aos outros que, mesmo quando somos capazes de intervir em uma área, o sistema é capaz de se adaptar e se reorganizar de modo a compensar a perturbação e reassumir sua dinâmica original. Não à toa, quando conflitos sociais assumem uma dinâmica desse tipo, eles se tornam particularmente difíceis de resolver e tendem a escalar progressivamente e perigosamente, atraindo cada vez mais pessoas e gerando cada vez mais violência.

Outra maneira de visualizar o tamanho da vala em que estamos nos metendo é em termos da força gravitacional exercida por ciclos, ciclones e supertempestades viciosas. Podemos imaginar, por exemplo, um ciclo vicioso simples de dois fatores como o da figura abaixo gerando um certo declive. Sendo apenas dois fatores interagindo, escapar do declive é relativamente fácil. No exemplo que usamos acima: se minhas opiniões sobre determinado assunto político me levam a consumir apenas informação que confirme essas opiniões e isso gera um padrão de auto-reforço, eu posso empreender esforço deliberado para buscar informação desconfirmatória. Na ausência desse esforço, o declive naturalmente me atrairá de volta ao padrão de auto-reforço.

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No caso de ciclones viciosos com múltiplos fatores, no entanto, não basta intervir em apenas um dos componentes do sistema. Para continuar no exemplo acima: eu posso até ir atrás de informação desconfirmatória e isso pode me dar um empurrãozinho para fora da vala. Mas talvez eu ainda cultive antipatia e desconfiança pelas fontes de informação alternativas que encontrei. Talvez exista pressão social dos meus círculos de amizade para que eu desconsidere essas fontes alternativas. Talvez a tentativa de incorporar essas novas informações na minha visão de mundo leva a uma desagradável (ou até mesmo dolorosa) deterioração de narrativas que são centrais ao meu senso de identidade. A presença de um ou mais fatores desse tipo pode facilmente sabotar o hábito de buscar informação desconfirmatória – ou até mesmo transformar esse hábito em apenas uma procura pelos piores argumentos e representantes do outro lado de modo a me entrincheirar ainda mais no padrão de auto-reforço. Enfim, escapar do declive requer não apenas um esforço maior, mas atenção a fatores que podem acabar cavando uma vala maior ainda no caminho de volta ao fundo.

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No caso de uma supertempestade viciosa, estamos lidando com uma força gravitacional quase inescapável. Qualquer tentativa de escapar dos tóxicos padrões reforçando nossa psicose nacional é virtualmente anulada por uma densa e inescapável rede de incentivos que nos atola no fundo do poço, mantendo-nos presos em um abissal padrão de auto-reforço com potencial destrutivo virtualmente ilimitado.

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Essa forma de enquadrar o nosso problema serve para a ilustrar alguns pontos. O primeiro é que estamos lidando com um problema complexo. Isso pode parecer trivial, mas trata-se de algo absolutamente essencial, por pelo menos dois motivos. Primeiro porque nossa propensão ao simplismo e aversão à complexidade é um dos elementos fundamentais que fazem a supertempestade da polarização ganhar força. É o que nos leva a ver o mundo em termos binários, a imaginar que todo problema tem uma solução fácil e a acreditar que abordagens diversas não têm nada a contribuir. Trata-se evidentemente de um hábito mental a ser evitado, mas que, infelizmente, dá o tom de praticamente todos as discussões em torno das quais estamos polarizados hoje em dia.

Segundo porque estou usando a palavra ‘complexo’ em sentido bastante específico. Apesar dos termos frequentemente serem tratadas como sinônimos, um problema complexo não é a mesma coisa que um problema complicado. Um exemplo de um problema complicado seria um motor enguiçado: muitas peças agem em conjunto para fazer um motor funcionar e algum conhecimento de mecânica é necessário para entender a função e mecanismos de interação de cada uma delas. Mas no caso de um motor estamos lidando, em última análise, com uma cadeia linear de causa e efeito, um mecanismo que pode ser desmontado e analisado em suas partes componentes de modo a identificar o problema e remontado para assumir sua função original. É fácil prever o efeito que uma ou outra intervenção de natureza técnica terá em um problema mecânico, por mais complicado que seja.

Um problema complexo, por outro lado, é altamente irregular, desordenado e não necessariamente segue cadeias lineares de causa e efeito. É o que Karl Popper explicou ser a diferença entre ‘clock problems’ (ou problemas mecânicos) e ‘cloud problems’ (ou problemas nebulosos). Como o nome sugere, um exemplo de problema complexo ou ‘nebuloso’ seria tentar prever o comportamento de partículas de água na atmosfera ou de uma molécula individual em uma nuvem de gás. São fenômenos que envolvem tantos fatores em tantos níveis diferentes de interação que seu comportamento se torna errático e frequentemente imprevisível (nossos meteorologistas que o digam). Muitos problemas humanos também podem ser classificados como ‘nebulosos’, por exemplo: formas sistêmicas e persistentes de corrupção, pobreza, discriminação e, é claro, conflitos sociais caracterizados por polarização política.

Tentar prever o curso ou ‘solucionar’ problemas nebulosos requer um tipo particular de abordagem. Nas palavras de Coleman:

“Se a polarização que hoje enfrentamos cada vez mais em nossas vidas é um problema de tipo nebuloso, então pensar que podemos “consertá-la” diretamente administrando uma ou mais soluções técnicas – [como apenas botar conservadores e progressistas para conversar ou diminuir o tempo que passamos nas redes sociais] – é como pensar que uma chave de fenda poderia consertar um dia nublado. A solução é totalmente inapropriada e inadequada para trazer a mudança que desejamos.”

Coleman argumenta que nossa propensão ao reducionismo e familiaridade com processos de mudança linear nos trazem a confortável sensação de estarmos no controle de problemas aparentemente incontroláveis – mas isso frequentemente nos leva a caracterizar problemas nebulosos como se fossem problemas mecânicos. É esse o perigo que muitas vezes se esconde por trás de qualquer tentativa de ‘definir’ um conceito como polarização dizendo que ela “nada mais é” do que X ou Y ou Z. Por mais que X, Y e Z sejam componentes importantes do problema, achar que o problema irá embora se apenas solucionarmos X, Y e Z normalmente significa tratar sintomas da doença ao invés da doença em si. Isso pode nos dar a ilusão de progresso, mas eventualmente a dinâmica auto-organizável da nossa supertempestade nos atrairá de volta aos velhos padrões de auto-reforço.

Em termos práticos, aceitar que nosso quadro atual de polarização política é um problema desse tipo significa aceitar também que não existe solução fácil ou bala de prata para dar cabo desse problema. A verdade é que até mesmo falar em ‘soluções’ para o problema da polarização pode dar a impressão errada de que existe uma fórmula linear ou receita simples que possamos seguir e tudo ficará bem. Isso é uma ilusão. Temos que nos lembrar constantemente disso pois, em conflitos intratáveis, somos facilmente seduzidos por explicações uni-causais que nos ofereçam um claro ‘culpado’ pela crise. Daí que, em época de eleição, candidatos conseguem tão facilmente vender a ilusão de que conseguirão ‘unificar’ ou ‘pacificar’ o país, como se o fim da nossa crise cívica estivesse a um voto de distância. Daí, também, que muitos acreditam que regular ‘discurso de ódio’ ou ‘desinformação’ nas redes sociais resolveria o problema. Tais ‘soluções’ de cima para baixo não apenas ignoram o sistema auto-organizável no entorno do problema que se propõe a resolver, mas frequentemente implicam em assumir uma postura antagônica contra o suposto ‘culpado’ pela crise – o que corre o risco de fortalecer mais ainda os ciclos viciosos dessa supertempestade e a cavar uma vala maior ainda.

Esse enquadramento do problema também nos ajuda a ter em mente que nosso problema é maior que a soma das suas partes, e que um ‘zoom’ nos componentes individuais da supertempestade arrisca nos tornar míopes ao contexto maior. Por exemplo: podemos considerar justificados muitos dos comportamentos e atitudes individuais que compõem a supertempestade. Podemos considerar virtuosa a defesa intransigente e inflexível dos nossos valores. Podemos considerar útil concentrar nossa dieta informacional apenas em dados que nos ajudarão a defender esses valores. Podemos considerar compreensível a preferência por círculos sociais que compartilham desses mesmos valores. Podemos considerar justo abrir mão da civilidade nos nossos discursos políticos na medida em que isso nos permite chamar absurdos pelo nome. Podemos considerar certo caracterizar o outro lado a partir dos seus piores exemplos na medida em que seus supostos ‘moderados’ se recusam a se afastar deles. Podemos considerar legítimo usar afetos negativos como instrumento de mobilização política na medida em que isso galvaniza as pessoas em torno de causas em comum – e por aí vai. Individualmente, cada uma dessas considerações pode ter sua validade. Mas o problema não é a lógica individual de cada uma dessas considerações. O problema está na relação entre as partes. O problema é que avaliar cada um desses argumentos em separado sem ter em vista o sistema que eles alimentam em conjunto nos faz perder de vista a escolha que realmente estamos fazendo dentro do contexto maior.

Escolha é um termo a ser enfatizado aqui, pois uma das consequências mais previsíveis de nos rendermos às dinâmicas viciosas descritas acima é uma progressiva aniquilação da nossa agência e capacidade de escolha. Não à toa, ‘vício’ e ‘vicioso’ tem a mesma raiz, e o modelo de sistemas auto-organizáveis é muito usado para entender várias situações de vício. A sucessão de escolhas individuais em situações diversas e aparentemente autônomas pode dar a impressão de que estamos controlando a soma das partes, mas a verdade é que, quando damos um passo para trás (ou ‘zoom out’) para enxergar o sistema que emerge no conjunto, percebemos que existe uma correnteza de fatores determinando cada vez mais nosso percurso.

Para não ficar apenas no mundo das analogias: tornou-se cada vez mais comum ouvir de militantes políticos em ambos os lados do espectro ideológico que a situação política se tornou tão drástica que resta apenas um caminho: lutar. Embora interpretada com diferentes graus de literalidade, essa expressão normalmente implica tomar ações drásticas ou, às vezes, até mesmo violentas. O fato de que ações desse tipo tenham servido mais frequentemente para fortalecer seus oponentes do que para enfraquecê-los sugere que militantes que optam por elas têm capacidade reduzida para contemplar outros e mais inteligentes meio de “lutar” pelos seus objetivos. Temos nos ataques de 8 de janeiro à Brasília um exemplo bastante claro e extremo disso. Mesmo assumindo que possam haver motivos legítimos para insatisfação com o quadro político estabelecido nas eleições de 2022, resta a pergunta: por que esses manifestantes sentiam que não havia outra escolha a não ser fazer o que fizeram? É tentador botar a culpa na desinformação corrente nos meios digitais, no discurso beligerante dos seus líderes, na falta de confiança nas instituições ou em qualquer fator que possamos ‘isolar’ e (idealmente) ‘consertar’ de alguma forma. Uma resposta mais adequada, a meu ver, seria que a dinâmica viciosa da nossa supertempestade da polarização inevitavelmente estreita o escopo de escolhas e possibilidades no nosso engajamento cívico de modo a levar, inevitavelmente, a juízos e comportamentos destrutivos como os ocorridos no 8 de janeiro.

Isso, é claro, não se aplica apenas a casos extremos como esse: trata-se de uma dinâmica que determina muitos comportamentos cotidianos também. Por exemplo, até mesmo entre pessoas moderadamente engajadas tornou-se comum acreditar que, em se tratando de pessoas de determinado campo político, a única opção que resta é cortar relações (preferencialmente de modo que torne claro o desprezo que tal pessoa merece por suas opiniões). No entanto, quando perguntamos a pessoas que tomam esse tipo de atitude se elas acreditam que a atitude terá efeito positivo, normalmente não é tão difícil fazê-las admitir: o mais provável é que as pessoas com que cortamos relações (principalmente se fizemos questão de expressar nosso desprezo por elas) se tornem ainda mais antipáticas à nossa causa e adotem posições ainda mais extremas do que tinham antes. Ora, se a justificativa por trás da decisão é a nobreza da nossa causa, por que então tomamos atitudes que sabidamente irão prejudicá-la e gerar mais antagonismo contra ela? Porque é simplesmente da natureza da dinâmica viciosa em que nos encontramos: nos tornamos reativos ao invés de reflexivos, incapazes de dar o passo para trás necessário para avaliar as consequências das nossas escolhas. Na verdade, cada vez mais, o que resta é apenas a ilusão de escolha. Não somos mais nós que escolhemos: o caminho é dado pelos ventos da polarização. Não somos mais nós que agimos: é a dinâmica viciosa da supertempestade age através de nós.

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A polarização que estamos experienciando pode ser compreendida, em suma,  como um sistema auto-organizável atravessando diversas esferas socioecológicas – desde macro-esferas que abarcam processos sociais de grande escala, até micro-esferas que abarcam íntimos processos psicológicos. Embora nenhum dos elementos individuais que compõem esse sistema incorpora, em si mesmo, a essência do problema, a relação viciosa que se estabeleceu entre eles elementos adquiriu uma dinâmica própria que atrai e direciona ações de modo a progressivamente suprimir a nossa possibilidade de agência e alimentando inúmeras disfunções.

Embora não exista fórmula pronta ou solução fácil para reverter a dinâmica da polarização, esse enquadramento do problema estabelece alguns princípios e metas básicas. Salienta-se principalmente a necessidade de cultivar uma certa tolerância à complexidade e à ambiguidade que muitas vezes permeia os fatores que contribuem para a dinâmica da polarização. Embora esses fatores possam se tornar tóxicos tóxicas, eles muitas vezes não são tóxicos em si mesmos e podem até alimentar ciclos virtuosos quando canalizados de forma diferente.

Salienta-se também a necessidade de preservar nossa agência, reflexividade e soberania interna frente aos inúmeros estímulos à reatividade que a dinâmica da polarização nos impõe. Quando nos tornamos incapazes de vislumbrar mais do que apenas uma resposta possível a um determinado estímulo, isso é sinal de que nossa agência provavelmente está sendo capturada por uma dinâmica viciosa. Adquirir plena consciência dessas dinâmicas quando elas se impõem sobre nós é crucial não apenas para produzir uma cultura cívica mais saudável, mas também para obter maior controle sobre nossas próprias vidas na esfera pessoal. 

Por último, salienta-se a necessidade de esforço contínuo e persistente para combater as dinâmicas mais tóxicas da polarização. Como vimos, essa dinâmica é de tal forma ‘atrativa’ que o relapso a padrões tóxicos se torna praticamente inevitável. A incorporação de padrões mais saudáveis nesse sistema não garante que conflitos político-ideológicos jamais tomarão forma destrutiva – muitos fatores de fato permanecerão sempre fora do nosso controle. O máximo que podemos esperar é que, confrontados por essas dinâmicas, saberemos responder de forma sábia e reflexiva. 

Essas, no entanto, são orientações bastante gerais. Práticas específicas podem variar imensamente de acordo com o contexto. É por isso que, se você deseja contribuir para o combate às dinâmicas tóxicas da polarização, é importante saber onde exatamente você pode se inserir no campo da polarização. Mapear esse campo será o propósito do meu próximo ensaio.

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