O que é polarização? Parte 1: O jogo das definições

Por: Pedro Franco

Poucos discordariam que um bom primeiro passo quando queremos solucionar um problema é tentar definir exatamente que problema é esse. De fato, um dos motivos pelos quais a tão-falada polarização vem se mostrando um problema tão difícil de solucionar é porque não se trata de um problema tão simples assim de definir. Pode parecer estranho dizer isso enquanto a palavra é usada quase todo dia, como se todos tivessem uma ideia clara e inequívoca do que ela significa, mas a verdade é que ‘polarização’ pode significar coisas muito diferentes para pessoas diferentes. Só na literatura acadêmica sobre o assunto, eu já encontrei mais de dez definições diferentes do termo, cada uma apontando para fenômenos sociais distintos. No debate popular, onde o sentido das palavras frequentemente é mais ambíguo, significados diferentes também se proliferam. Com isso, também se prolifera um tipo um tanto quanto frustrante de debate sobre, por exemplo, se a polarização é algo bom ou ruim, sobre como e quando a polarização realmente começou – ou até mesmo se a polarização existe ou não – onde as aparentes “discordâncias” se dão simplesmente pelo fato de que as pessoas estão usando a mesma palavra para falar sobre coisas diferentes. Uma das primeiras tarefas de qualquer iniciativa que propõe dedicar-se à des-polarização deveria ser, portanto, a de evitar ao máximo esse tipo de confusão e tentar deixar o mais claro possível o que se quer dizer com polarização.

Como sugere o título, este ensaio se propõe a fazer algo parecido com isso, mas antes cabe alinhar algumas expectativas. Dificilmente conseguiremos, ao explorar o catálogo de definições que o termo recebeu na literatura acadêmica, apontar uma delas como a definição ‘correta’ e derradeira do problema que vou tentar explicitar aqui. O motivo para isso está relacionado, em parte, ao procedimento padrão para se definir – ou ‘operacionalizar’ – conceitos nas ciências sociais modernas, o que normalmente implica reduzir o fenômeno a algo que possa ser quantificado e mensurado de forma isolada. É um procedimento útil e às vezes indispensável para se medir relações de causa e efeito em torno do fenômeno em questão, mas tratar o nosso problema como se ele pudesse ser resumido a um único fator isolável e quantificável seria um reducionismo grave que sem dúvida nos levaria a propostas de ‘despolarização’ igualmente inapropriadas.

A dificuldade em definir precisamente a polarização também está relacionada a um dos motivos pelos quais o termo vem recebendo tantos sentidos diferentes no debate público: ‘polarização’ se tornou uma espécie de termo guarda-chuva que se refere não apenas a um problema, mas a uma constelação de problemas. Na verdade, alguns desses problemas, tomados isoladamente, talvez nem seriam considerados problemas – ou, pelo menos, não problemas muito sérios. No entanto, a maneira como esses vários problemas interagem e se reforçam uns aos outros é o que está gerando uma série dilemas e desafios cada vez mais preocupantes – uma ‘tempestade perfeita’, por assim dizer – que ameaça diversas frentes do nosso desenvolvimento pessoal e coletivo.

Falarei mais sobre essa compreensão ‘sistêmica’ da polarização na segunda parte desse ensaio. Por agora, vale enfatizar que qualquer um dos fenômenos que levam o nome de ‘polarização’ na literatura acadêmica está, na maior parte das vezes, se referindo a apenas um aspecto do problema maior que acomete nossa cultura cívica. Naturalmente eu não terei como abordar todos os aspectos relevantes desse tema tão abrangente aqui, e muitos sentirão que eu deixei elementos cruciais de fora. O propósito principal aqui é apenas expor algumas distinções conceituais que nos ajudarão a aprofundar discussões de ordem prática e normativa em outro momento. Na segunda parte do ensaio, discutirei uma forma de reunir os conceitos tratados aqui e algumas implicações práticas dessa abordagem.

Polarização enquanto divergência ideológica

Vamos por partes então e falar de alguns dos conceitos que já receberam o nome de ‘polarização’ na literatura especializada. Um deles é o que normalmente leva o nome de polarização ideológica, que se refere à crescente divergência de opiniões e atitudes em uma população sobre assuntos substantivos, normalmente de natureza política. Existem meios diferentes de mensurar essa divergência, mas, em todo caso, estamos falando de um fenômeno relativamente simples: quando dizemos que a sociedade está mais ideologicamente polarizada, isso por si só normalmente significa apenas que as pessoas estão discordando mais sobre questões políticas.

Aqui quase sempre surge uma questão de ordem normativa: a polarização ideológica é algo ruim? Não necessariamente, é claro. Afinal, a discordância, por si só, é natural, pode ser benéfica e muitas vezes até mesmo necessária para o desenvolvimento e sobrevivência de uma sociedade democrática. Em níveis mais locais, sabemos que discussões estruturadas em torno do embate de visões opostas podem ter claros benefícios pedagógicos. Princípio semelhante também foi demonstrado em um estudo sobre a Wikipedia que concluiu que quanto mais ideologicamente polarizada é a equipe que desenvolve um artigo, maior tende a ser a sua qualidade quando comparado a artigos escritos por equipes mais próximas ao centro ou ideologicamente homogêneas. Inúmeros estudos também apontam para os perigos que cercam equipes e organizações em que divergências ideológicas internas são suprimidas – seja no meio corporativo (aqui e aqui), ou acadêmico (aqui, aqui, aqui, e aqui). Lições abundam, portanto, sobre como discordâncias – mesmo quando extremas – podem levar a trocas produtivas e a resultados benéficos. Quando ouvimos dizer, portanto, que a polarização não é um problema tão sério e que não deveríamos nos preocupar tanto assim com ela, é normalmente essa a definição que está sendo usada. É também essa a definição usada quando ouvimos críticas à despolarização que a reduzem ao objetivo ingênuo (e fundamentalmente indesejável) de fazer desaparecer nossas divergências ideológicas.

Todos nós sabemos, no entanto, que discordâncias podem tomar caminhos bem menos produtivos do que os exemplos acima – e não associaríamos a polarização a tanta ansiedade, turbulência, crise e conflito se estivéssemos falando apenas de divergências de opinião. O nosso problema, evidentemente, não é que estamos discordando mais, mas a forma como essas discordâncias estão se dando e os efeitos tóxicos que elas vêm produzindo. São outros fatores além da discordância em si mesma que determinam esses resultados, e se quisermos um diagnóstico minimamente apropriado do mal que acomete nossa cultura cívica, não basta dizer que a tão-falada polarização ‘nada mais é’ do que divergências de opinião.

Polarização de crença e a fronteira entre fatos e opiniões

Vale notar que até agora estamos discutindo ‘discordâncias’ em sentido um pouco abstrato. Afinal, não seria relevante perguntar sobre o que as pessoas estão discordando? Uma das diferenciações que cientistas sociais tentam fazer nesse sentido é entre discordâncias que giram em torno de valores e opiniões (polarização ideológica) e discordâncias que giram em torno da percepção do que é falso ou verdadeiro (polarização de crenças). Apesar de distintos, os fenômenos parecem estar cada vez mais correlacionados: pessoas com opiniões políticas opostas frequentemente também discordam sobre fatos básicos. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva encontrou, por exemplo, que se você perguntar quanto foi o crescimento médio do PIB durante determinado governo (seja do Lula ou do Bolsonaro), você provavelmente terá duas respostas diferentes se falar com uma pessoa de esquerda e uma de direita – mesmo que o número real seja apenas um só.

É fácil acreditar que a polarização de crenças poderia ser mais facilmente resolvida do que a polarização ideológica. Afinal, aqui temos, em tese, o recurso a fatos empiricamente verificáveis para arbitrar os polos do debate. É por isso que, quando as pessoas tomam esse como o aspecto mais relevante da polarização, elas tendem a achar que a nossa crise cívica se resolveria se conseguíssemos sanar nossa ecologia midiática da desinformação e das ‘fake news’. Alguns chegam a acreditar que eliminando a polarização de crenças eliminaríamos também a polarização ideológica, pois se todos tivéssemos acesso aos mesmos fatos, chegaríamos às mesmas conclusões em termos de valores e opiniões também (uma noção que a socióloga Ilana Redstone chama de ‘falácia do conhecimento igual’).

Resolver a polarização de crenças, no entanto, não é tão simples quanto parece. A começar porque a distinção entre o que é matéria de fato e matéria de opinião nem sempre é tão clara no mundo da política, onde fatos são normalmente apresentados de modo a influenciar escolhas e, portanto, raramente desassociados de algum juízo de valor e/ou relevância. Além do mais, nossas convicções ideológicas frequentemente nos levam a confundir juízos de valor com verdades objetivas – por exemplo: quando afirmamos como ‘fato’ que determinado presidente foi o ‘melhor’ ou ‘pior’ (palavras que, por definição implicam juízo de valor) presidente da história do país.

As dificuldades em distinguir o objetivo do subjetivo em qualquer percepção ou pronunciamento são notórias a ponto de levar muitos a proclamar, de forma mais ou menos resignada, que ‘não existe verdade’ – uma atitude que certamente não ajuda muito a superar essas dificuldades e nem nos exime da responsabilidade por nossas escolhas, interpretações e pronunciamentos. Sem entrar muito em questões filosóficas e epistemológicas sobre a natureza da verdade e a capacidade humana de alcançá-la, devemos reconhecer que o apelo a fatos objetivos como forma de arbitrar a polarização de crenças encontra um obstáculo: raramente são os fatos em si que determinam nossa percepção da realidade, mas sim a interpretação que fazemos dos fatos. Esse é grande parte do motivo pelo qual temos visto, de tempos para cá, uma espécie de ‘virada psicológica’ nos estudos sobre polarização política. Cada vez mais pesquisadores buscam ressaltar o quanto que nossos vieses políticos são capazes de moldar nossa percepção da realidade. Tais vieses são tão poderosos que às vezes chegam a comprometer até mesmo nossa capacidade de fazer aritmética básica quando nossas preferências políticas estão em jogo. E não adianta botar a culpa a falta de educação por essas interpretações equivocadas: a formação educacional de uma pessoa frequentemente tem o efeito de deixá-la mais hábil em encaixar dados inconvenientes em narrativas convenientes, tornando-a mais suscetível a vieses politicamente motivados do que pessoas com menos formação educacional. Também contrariando o senso comum, algumas pesquisas mostram que pessoas com mais educação formal tendem a ser mais crédulas em relação a notícias falsas que confirmam suas preferências políticas, e não menos. Sendo assim, embora tanto o nível educacional da nossa população quanto o material que circula no nosso ecossistema informacional certamente tenham influência sobre o fenômeno da polarização de crenças, as realidades paralelas que estamos vendo hoje entre campos políticos opostos provavelmente continuará existindo mesmo se erradicarmos as ‘fake news’ e mesmo que tornássemos todos nossos cidadãos mestres e doutores. Em suma, há outros fatores que ajudam a reforçar essas realidades paralelas, como veremos mais abaixo.

Assimetria moral e polarização percebida

Deixando de lado a discussão sobre fatos e verdades e voltando à discordância sobre valores e opiniões, uma pergunta que surge frequentemente é: o que acontece quando um lado do debate é evidentemente, indiscutivelmente, absolutamente imoral e repreensível? Há contexto ou circunstância que torne discordâncias desse tipo produtivas? Responder essas perguntas e determinar o quanto que elas se aplicam ao nosso atual contexto político é, certamente, uma tarefa que nenhuma iniciativa de despolarização pode se dar ao luxo de ignorar. Embora eu pretenda tratar de alguns pontos relacionados a esses dilemas aqui, enfrentá-los diretamente exigiria um desvio muito grande dos propósitos deste texto. Seja como for, precisamos reconhecer que, para muitas pessoas, o que tem conferido à tão-falada polarização seu caráter destrutivo é a assimetria moral entre as partes discordantes – ou, em outras palavras, o fato de que um dos polos é moralmente condenável e simplesmente não deveria haver discordância nenhuma sobre isso.

Sem desviar totalmente dessa questão, mas retomando o propósito deste ensaio em particular, vale nos aprofundarmos em um fenômeno que na literatura especializada recebe o nome de polarização percebida. O conceito se refere, como o nome diz, à percepção que grupos políticos têm sobre as opiniões e atitudes um do outro. Estudos de opinião recorrentemente apontam que, quanto mais comprometidas as pessoas estão com um partido ou bandeira política, mais elas tendem a exagerar e distorcer o que os representantes do outro lado realmente acreditam. Ou seja, quanto mais convictos nós estamos da virtude do nosso lado, mais tendemos a deturpar negativamente nossa percepção e representação do ‘outro’ lado.

Embora então possamos aceitar que certas pessoas e posições estão além do debate racional, o mais comum é vermos pessoas se aproveitando (ou melhor, abusando) dessa verdade para aplicar o rótulo indiscriminadamente e fazer generalizações sobre membros de um determinado grupo a partir dos seus piores exemplos. Isso, por consequência, não tende a gerar interações muito produtivas com membros desse grupo. Como eu costumo dizer, “Com esse tipo de pessoa não dá pra conversar” é uma profecia autorrealizável: tratar pessoas como se fossem radicais e extremistas é frequentemente o jeito mais fácil de fazê-las se comportar exatamente como esperamos que radicais e extremista se comportem. Dizer a alguém que ela é uma má pessoa por acreditar nisso ou naquilo também normalmente não é uma tática de persuasão eficiente, e por vezes torna a pessoa ainda mais reativa ao ponto de vista alternativo que você pretendia apresentar – mas isso também é assunto para outro texto.

Polarização afetiva, custos sociais e engajamento cívico

Outro conceito crucial que aparece em estudos da polarização política é o que cientistas sociais chamam de polarização afetiva, que se refere à medida em que determinados grupos dentro de uma população cultivam sentimentos negativos em relação uns aos outros. Mensurações de polarização afetiva podem ser feitas de várias maneiras e capturar afetos ligeiramente diferentes. Seja como for, pesquisas recentes tendem a mostrar, no geral, um drástico aumento na animosidade, desprezo e desconfiança que grupos políticos hoje cultivam uns pelos outros – uma tendência que os EUA parecem liderar, mas na qual o Brasil certamente não fica muito atrás.

Quando as pessoas falam da polarização como algo preocupante, é normalmente algo mais próximo da polarização afetiva que elas têm em mente. A polarização afetiva, afinal, é menos ambivalente do que a polarização ideológica, e as tensões que ela impõe ao sistema político tendem a ser mais previsíveis. As consequências exatas naturalmente dependem das circunstâncias políticas (assimetrias de poder, históricos de opressão e autoritarismo, etc.) e da natureza dos afetos prevalentes (se antipatias são temperadas mais fortemente por raiva, medo, nojo ou outros sentimentos negativos). Seja como for, desgostar e desconfiar de membros de determinado grupo naturalmente tende a influenciar o quão dispostos estaremos em tentar colaborar, dialogar ou até mesmo interagir com eles. Isso, por consequência, arrisca diminuir nossa confiança em instituições encarregadas de mediar esse diálogo, como é o caso das nossas instituições democráticas. No extremo, isso pode nos levar a deslegitimar completamente essas instituições quando elas são ocupadas por representantes do outro lado – ou, quando é o nosso lado que ocupa as instituições, a deslegitimar totalmente qualquer tipo de oposição.

Vale notar que a polarização afetiva normalmente forma uma espiral de auto-reforço com a polarização percebida: quanto mais retratamos membros de um grupo de forma negativa, mais desgostamos deles. E quanto mais desgostamos deles, mais propensos estaremos em retratá-los de forma negativa. Não à toa, a polarização afetiva pode rapidamente levar à sensação de que determinado grupo não é apenas desprezível, mas também representa uma ameaça real. Isso motiva ainda outra tensão institucional: a intenção de ‘proteger’ a ‘democracia’ do ‘outro antidemocrático’ – o que, por sua vez, pode motivar medidas extremas que acabam por minar a democracia, intencionalmente ou não. A política, em suma, torna-se um jogo de ‘tudo ou nada’ que estimula cada vez mais a animosidade entre as partes.

A polarização afetiva também tem efeitos para além do jogo da política institucional – algo que não é de modo algum surpreendente se considerarmos o papel desempenhado pelos nossos afetos no nosso dia a dia. Em um estudo que eu e colegas realizamos em uma universidade privada no Paraná, em 2021 (prestes a ser publicado), alunos ao longo de todo o espectro político reportaram serem maltratados no campus por causa das suas opiniões políticas com mais frequência do que qualquer outro motivo. Estudos também mostram que a afinidade política influencia cada vez mais o quão dispostas as pessoas estão em cultivar relacionamentos umas com as outras, o tempo que familiares passam juntos em feriados, a contratação de funcionários e seleção de parceiros românticos. Alguns sugerem que alinhamento político influencia até mesmo a percepção de atração física. Não há dúvidas, portanto, que a polarização pode ter efeitos drásticos em nossos relacionamentos pessoais e, mais amplamente, na coesão social de um país polarizado.

Já que tornou-se cada vez mais comum vermos pessoas exibirem o seu desprezo por determinado campo político com certo orgulho, cabe novamente a questão normativa: existe algum benefício por trás da polarização afetiva? Alguns estudos sugerem que desprezo a um candidato ou partido político de fato pode motivar a mobilização política e o engajamento cívico – mas a relação entre polarização afetiva e engajamento não parece ser exatamente linear ou se aplicar à sociedade como um todo. Há motivos para acreditar que ela pode reprimir participação política, especialmente entre jovens. Numericamente, a desilusão e desinteresse em relação à política entre essa parcela da população vem crescendo pari passu com a polarização. Embora isso possa ter muitos motivos, pelo menos um estudo sugere que o motivo que mais cresceu nos últimos anos para o desinteresse pela política entre jovens é que: “não gosto de discussões políticas porque as pessoas tendem a discordar, e prefiro não me dar ao trabalho” (aqui vale ressaltar novamente que a discordância em si provavelmente não é o que afasta esses jovens, mas o ‘trabalho’ que essas discordâncias andam causando).

No estudo que mencionei mais acima sobre a prevalência de maltratos com motivação político-ideológica entre estudantes no Paraná, descobrimos, não surpreendentemente, que discutir e revelar os próprios posicionamentos políticos gera altos graus de ansiedade e relutância entre esses mesmos estudantes (39,8% dos alunos não se sentem confortáveis em compartilhar suas opiniões políticas com seus colegas). Embora então alguns possam acreditar que a polarização afetiva é moralmente justificada pois ela estimula o engajamento cívico, a verdade é que um contexto de alta animosidade política também pode desestimular e afastar do debate público aqueles que querem evitar rótulos e agressões – algo que parece se aplicar principalmente à parcela mais jovem da população.

Vale mencionar também uma pergunta levantada com frequência sobre a relação entre polarização afetiva e polarização ideológica. Afinal, não é natural que discordâncias sobre certos assuntos gerem sentimentos negativos entre as partes? Aqui, novamente, a resposta é… depende. Um estudo de caso interessante sobre isso ocorreu em Boston, cidade que se tornou epicentro de uma conflagração social em torno do tema da legalização do aborto nos EUA dos anos 80 e 90. Percebendo a necessidade de desescalar o conflito após um ataque terrorista à mão armada que matou duas pessoas e feriu várias outras em dezembro de 1994, líderes do movimento pró-vida e pró-escolha passaram a se encontrar regularmente, em privado, para empreender esforços de conciliação. Após anos desses encontros, os participantes relataram resultados, em suas palavras, ‘paradoxais’: nenhum dos participantes moveu-se em direção ao ‘centro’ – pelo contrário, cada lado se tornou mais convicto ainda das suas posições sobre o tema. Apesar disso, no entanto, ambos os lados também passaram a cultivar respeito, admiração e até mesmo afeto profundo pelas pessoas no outro lado da questão. Ou seja, ainda que a polarização ideológica entre os grupos tivesse aumentado, a polarização afetiva se diminuiu. O caso é um entre muitos que demonstram que mesmo discordâncias morais absolutamente irreconciliáveis não necessariamente nos condenam ao desprezo mútuo.

Agrupamento, polarização grupal e ‘bolhas’ sociais

Não é sempre, é claro, que reunir oponentes em conflito terá o efeito de diminuir o sentimento negativo entre as partes. Isso depende muito das circunstâncias do encontro e como eles são estruturados. Seja como for, a ausência de interação entre as partes tende a criar espaço para que ambas cultivem estereótipos mais facilmente uma da outra, acirrando o fenômeno da polarização perceptiva que mencionei mais acima e, por sua vez, acirrando também a polarização afetiva. Esse isolamento social e geográfico entre grupos políticos, no entanto, vem se mostrando uma tendência cada vez mais forte, algo que cientistas sociais chamam isso de agrupamento ideológico. Isso está relacionado a um fenômeno psicológico chamado homofilia, ou ‘atração pelo semelhante’. Trata-se do impulso perfeitamente natural e compreensível de querer estar perto de quem compartilha dos mesmos gostos e valores, o que acaba levando pessoas semelhantes a ocuparem espaços sociais semelhantes. Em um contexto de crescente polarização afetiva, esse agrupamento também pode refletir o desejo – também compreensível – de nos afastarmos de pessoas que nos geram sentimentos negativos.

Outro fator psicológico relevante por trás do agrupamento político é o famoso viés de confirmação, isso é, a nossa tendência de buscar e acreditar com mais facilidade em informações que confirmam aquilo que nós já acreditamos. Quando se trata de convicções profundas que definem nosso senso de identidade (como muitas vezes é o caso das nossas convicções políticas), o viés de confirmação pode se entranhar de tal maneira nas nossas vias neuronais ao ponto de se tornar literalmente viciante, gerando atração irresistível por fontes de informação confirmatória e aversão visceral a fontes de informação desconfirmatória. Não é de surpreender, portanto, que sejamos tão atraídos por pessoas e círculos sociais que tendem a confirmar as nossas opiniões.

Combinado à homofilia e agrupamento político, o viés de confirmação produz algo que cientistas sociais chamam de polarização grupal: a tendência de um grupo com opiniões semelhantes a reforçar ainda mais essas opiniões, fazendo com que grupos ideologicamente homogêneos tendam naturalmente em direção ao extremismo. Isso acontece não só porque membros de um grupo ideologicamente homogêneo tendem a satisfazer o viés de confirmação uns dos outros, mas também porque afirmar as posições que definem o grupo inevitavelmente torna-se um sinal de pertencimento e identidade grupal, o que motiva seus integrantes a expressá-la com regularidade e entusiasmo. Isso, por sua vez, gera uma espiral de auto-reforço que aumenta progressivamente o custo social de expressar opiniões minoritárias na mesma medida em que alimenta o incentivo social para expressar e aderir às opiniões dominantes do grupo.

Alguma noção dos efeitos negativos do agrupamento ideológico e da polarização grupal parece estar penetrando no senso comum – ao menos é isso que sugere a popularização do termo “bolha” (ou “echo chamber”, nos EUA). Bolhas ideológicas raramente recompensam ‘advogados do diabo’, o que normalmente resulta não apenas em cada vez mais extremismo, mas também em cada vez menos nuance, profundidade e sofisticação nos posicionamentos de seus membros. Isso torna os integrantes da bolha cada vez menos capazes de tomar decisões que avançam seus próprios interesses, e cada vez mais despreparados para debater (para não falar em dialogar) com pessoas fora da bolha. Essa é uma reclamação que se tornou comum, por exemplo, entre aqueles que estudaram em universidades que não proporcionam oportunidades de interagir de forma aberta e honesta com pessoas e ideias fora da bolha progressista. Bolhas conservadoras também existem, certamente, deixando muitas pessoas de direita igualmente despreparadas para interagir com pessoas de esquerda. Nem é preciso dizer que, quanto mais essas interações produzem conflitos e ansiedade, mais elas são evitadas, mais as bolhas se isolam e mais o ciclo vicioso se fortalece.

Consistência/restrição ideológica e saturação política

Quando bolhas do tipo descrito acima se formam, geralmente não é apenas uma única opinião que é reforçada, mas uma série de opiniões mais ou menos consistentes entre si. Isso tende a reforçar um fenômeno chamado de consistência ideológica, ou então de restrição ideológica, que se refere ao grau de coerência interna nos posicionamentos sobre questões diversas observadas em um determinado campo político. Em outras palavras, é o quanto somos capazes de prever as opiniões de um indivíduo sobre determinados assuntos baseado no que sabemos da sua opinião sobre outros assuntos. Isso significa que quando dois brasileiros ‘ideologicamente consistentes’ discordam, por exemplo, sobre política de cotas, elas provavelmente discordarão também sobre porte de armas, legalização do aborto, Lei Ruanet, mudanças climáticas, operação Lava-jato, diferenças biológicas entre os sexos, liberdade de expressão, eficácia das vacinas anti-covid, e por aí vai. Conforme cresce o grau de consistência/restrição ideológica em uma população, portanto, o debate em torno de uma diversidade cada vez maior de questões é ‘achatado’ ao longo de uma única dimensão ideológica, normalmente representada pelo espectro direita-esquerda.

Uma das primeiras coisas a se notar nesse fenômeno é que, se existe hoje uma maneira convencionalmente ‘de direita’ ou ‘de esquerda’ de se posicionar os assuntos listados acima, isso não significa necessariamente que existe uma concatenação lógica determinando esses posicionamentos. Muito embora a consistência ideológica possa ser motivada pela aplicação coerente de princípios norteadores de uma determinada ideologia, muitas vezes ela ocorre simplesmente devido ao ‘efeito manada’ da polarização grupal. Estudos mostram, por exemplo, que pessoas tendem a apoiar políticas públicas que seus partidos apoiam, independentemente do conteúdo da proposta. No Brasil, estudos sugerem que a maior parte do eleitorado não escolhe o candidato que irá votar com base nas políticas públicas que apoia, mas, ao contrário, escolhe as políticas públicas que apoia com base no candidato que escolheu votar. A consistência ideológica, portanto, normalmente tem menos a ver com uma lógica de valores e princípios do que com os incentivos sociais e psicológicos que nos levam a aceitar, por inteiro, o ‘pacote ideológico’ fornecido por nossas elites políticas.

Naturalmente, consistência ideológica por si só também não é algo necessariamente ruim. Algum grau de coerência interna entre partidos, por exemplo, é certamente desejável. No debate público mais amplo, ‘achatar’ a multiplicidade de discussões políticas particulares ao longo de um número reduzido de dimensões fornece quadros interpretativos estáveis e acessíveis que podem ajudar o cidadão comum a fazer sentido de assuntos complexos e a se mobilizar em torno de bandeiras abrangentes. Vale lembrar que a maioria das pessoas não tem o tempo ou disponibilidade para acompanhar e se informar sobre os intermináveis debates políticos do dia a ponto de tomar posições minuciosamente informadas sobre cada um deles. Se não delegássemos ao menos parte do esforço mental necessário para formar nossas opiniões aos movimentos, correntes ideológicas e formadores de opinião com os quais temos mais afinidade, a mobilização política seria algo praticamente impossível para o cidadão comum (muito embora essa delegação possa se tornar perniciosa a partir de certo ponto). Assim como muitos dos fenômenos que estamos discutindo, a virtude por trás da consistência/restrição ideológica é ambivalente, e seus resultados dependem de inúmeros fatores.

Seja como for, a consistência/restrição ideológica pode se auto-reforçar ao ponto de comprometer o funcionamento da democracia. Na política institucional, ela pode dificultar a formação de coalizões multipartidárias na medida em que partidos e grupos políticos passam a ter cada vez menos pontos de contato entre si. De forma mais abrangente, ela pode fazer com que provas de lealdade partidária se apliquem a cada vez mais assuntos – inclusive assuntos que nada tinham a ver com política até recentemente. Robert Talisse dá a esse fenômeno o nome de saturação política, algo que, no extremo, nos leva a determinar um jeito ‘de direita’ ou ‘de esquerda’ de pensar, agir, falar, se vestir e etc. – e assim entramos na era da ‘lifestyle politics’. Quando nosso perfil político começa a se alinhar com outras facetas da nossa identidade social, cada vez mais áreas da vida passam a ser colonizadas por bandeiras políticas, fazendo com que pessoas possam ser politicamente rotuladas com base, muitas vezes, em atitudes inócuas. Combinado aos outros fenômenos que tratamos acima, isso faz com que relacionamentos colaborativos em cada vez mais áreas da vida exijam que a visão de mundo das pessoas estejam 100% alinhadas em todos os aspectos. Uma área que sofre particularmente por causa desse fenômeno é a política local, que normalmente tem menos a ver com grandes debates ideológicos e mais com problemas mais palpáveis do dia a dia (alguns estudos sugerem que o cidadão politicamente engajado está se tornando cada vez menos interessado em questões locais e cada vez mais por assuntos de interesse nacional e que possam mais facilmente se enquadrar em uma das ‘grandes narrativas’ ideológicas).

Polarização de elite vs. polarização de massa

Como mencionei mais acima, uma das dificuldades em determinar os efeitos causais lineares da polarização é que as suas diversas facetas se manifestam de formas diferentes entre parcelas diferentes da população. Uma diferenciação comum em muitos estudos, por exemplo, é entre polarização de massa e polarização de elite – a primeira se refere à forma como a polarização afeta o público em geral, a última à forma como ela afeta participantes mais ativos e tomadores de decisão no mundo da política. Como é de se esperar, a polarização de elite tende a superar a polarização de massa, alguns estudos sugerindo até mesmo que a polarização é um fenômeno que se aplica exclusivamente a elites. Hoje há certo consenso, no entanto, de que a população em geral está se tornando mais polarizada (em todos os sentidos), embora isso pareça ser um fenômeno que se dá ‘de cima para baixo’, ou seja, primeiro nossas elites se polarizam, depois a população em geral segue a tendência.

Isso é especialmente verdadeiro no caso da consistência/restrição ideológica: a imensa maior parte da população não tem posições políticas muito coerentes entre si, normalmente adotando um misto de posições à direita e à esquerda sobre questões diversas. Consistência/restrição ideológica se observa mais frequentemente entre pessoas que estabelecem o tom mais visível do nosso debate público – sejam representantes políticos stricto sensu ou comentaristas e influenciadores políticos; mas também pessoas hiper-engajadas que, apesar de compor uma parcela relativamente pequena da população, são responsáveis por uma quantidade desproporcional dos posts políticos que encontramos nas redes sociais. Não à toa, os outros aspectos da polarização que tratamos acima também tendem a se manifestar com mais intensidade entre essa parcela da população.

São vários os fatores que tornam elites desproporcionalmente polarizadas quando comparadas à população em geral. A começar pelos sistemas de incentivos dentro dos quais políticos e influenciadores em busca de popularidade operam. Estudos mostram que demonstrações de animosidade contra outros grupos tendem a gerar mais engajamento do que demonstrações de simpatia ao ‘nosso’ grupo, o que contribui para que, na era das redes sociais, a beligerância, fator de choque, ‘lacrações’ e afins sejam recompensados. Isso muitas vezes acaba sendo incorporado ao modelo de negócios de muitos veículos de mídia, para não falar da estratégia de campanha de muitos políticos.

Além da maior facilidade em capitalizar afetos negativos, outro fator alimentando a polarização de elite é o fenômeno da audience capture’. É o que normalmente acontece quando um canal, programa ou influenciador começa a adquirir um público ideologicamente homogêneo que passa a esperar desse veículo um reforço constante das suas narrativas favoritas. O canal, programa ou influenciador pode passar, voluntariamente ou não, a transmitir ao seu público apenas o que ele quer ouvir: seu conteúdo é, por assim dizer, ‘capturado’ pela audiência. Assim como nas ‘bolhas’ que eu descrevi acima, o influenciador que buscar um grau maior de nuance, tentar fazer papel de ‘advogado do diabo’ ou se desviar um pouco da ‘narrativa’ pode ser visto como traidor pela sua audiência e correr o risco de perdê-la. Isso gera poderosos incentivos psicológicos e financeiros para que influenciadores mantenham suas audiências confortavelmente presas em suas bolhas, o que normalmente implica evitar contrariar os elementos mais polarizados dessa audiência.

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Como falei, não haveria como tratar de todos os fenômenos associados à tão-falada polarização neste ensaio. As distinções conceituais que a literatura acadêmica oferece nos ajudam a vislumbrar os diferentes enfoques teóricos que o tema pode receber e, consequentemente, os diferentes enfoques práticos também. Essas distinções frequentemente estão implícitas em nossas discussões sobre polarização, norteando a maneira como navegamos o tema. Torná-las explícitas, portanto, é um bom primeiro passo na direção de discussões mais produtivas.

Primeiro passo, mas sem dúvida não o último. Na segunda parte deste ensaio, vou expor alguns modelos através dos quais podemos amarrar os diversos fenômenos e tendências tratadas aqui em algo se aproximando de uma compreensão ‘sistêmica’ do que é polarização.

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