Escola sem partido, politização e heterodoxia

Por: Pedro Franco

De todos os ambientes onde a polarização política se manifesta, poucos geram tanta preocupação e controversa quanto o ambiente educacional. Isso não é de modo nenhum surpreendente quando consideramos os desafios que nossas instituições de ensino enfrentam em decorrência das tensões políticas contemporâneas. No entanto, embora a demanda para que esses desafios sejam abordados esteja se acumulando há anos, diagnósticos incompletos e dificuldades inerentes ao contexto de polarização muitas vezes acabam gerarando propostas inadequadas que não chegam à raiz do problema ou, no pior dos casos, acabam contribuindo para exacerbá-lo. Eu gostaria aqui de tentar mapear algumas dessas armadilhas.

Podemos começar revendo uma história que se tornou emblemática na discussão desses temas. Ela começa em 2004, quando o advogado Miguel Nagib, indignado com a forma como certos assuntos políticos foram tratados pelos professores na escola de sua filha, inaugura o Escola Sem Partido. A proposta do movimento seria a de lutar contra “a instrumentalização do ensino para fins ideológicos, políticos e partidários”.

Embora o movimento tenha declarado encerradas as suas atividades a partir de agosto de 2019, é notável a influência que tanto seus apoiadores quanto seus detratores tiveram e continuam tendo nos parâmetros da discussão sobre intolerância política no meio educacional. Sob o risco de estereotipar uma gama bastante ampla de opiniões sobre o tema, é seguro dizer que o debate em torno desse tema corriqueiramente gravita em torno de dois polos. Um lado crê que escolas e universidades se tornaram centros de doutrinação ideológica dominados pela esquerda e que o caminho para lidar com isso seria através do monitoramento constante de professores e a punição exemplar de infratores. O outro lado crê que essa tal ‘doutrinação’ nada mais é do que uma narrativa direitista para censurar e intimidar professores e que qualquer tentativa de avançar essa narrativa deve ser combatida intransigentemente. Instituições de ensino, quando presas no fogo cruzado, frequentemente são forçadas a ceder à pressão de um desses dois lados.

Me chama atenção a repercussão que essa discussão acabou tendo nos anos de atividade do ESP. Foram inúmeras matérias de jornal e formadores de opinião que trataram do movimento – para não falar da apropriação do tema por plataformas políticas em escala local e nacional. Sem dúvida o ESP contribuiu para injetar no debate público temas em uma escala que jamais tinham alcançado. Mas quantidade não necessariamente significa qualidade. Embora, por exemplo, alguns debates interessantes tenham sido travados sobre o que poderia significar conceitos como ‘doutrinação’, ‘pensamento crítico’ ou ‘neutralidade ideológica’ no contexto educacional, acompanho essas discussões há algum tempo e é impressionante o quanto elas, no fundo, acabaram girando em torno da pergunta que sempre domina debates polarizados como esse: de que lado você está? Isso gerou entraves quase intransponíveis para uma discussão mais aprofundada dos problemas substantivos

Quando avaliamos os fatores que levou à polarização desse debate, podemos começar notando algumas características do discurso pró-ESP que são evidentemente sintomáticas do movimento ter surgido de fora do meio educacional. Já diz o aforismo que, quando habilidade com o martelo é tudo que você tem, todo problema começa a ter formato de prego. Talvez seja natural, portanto, que um movimento liderado por um advogado militante orbitará em torno de soluções legalistas – como se instituir tolerância e pluralidade ideológica na educação fosse mera questão de delimitar regras e implementar mecanismos de fiscalização. No entanto – como nos ensina a persistente e famigerada “guerra às drogas” – a força da lei muitas vezes se mostra inadequada ou no mínimo insuficiente para solucionar certos problemas. Para mim, pelo menos, é difícil imaginar que advogados, e não educadores, sejam aqueles a tratar da melhor forma esse problema em particular.

Isso nos leva a outro elemento notável no discurso pró-ESP, isso é, é a forma como professores tão frequentemente assumem papel de antagonistas. A solução de cima para baixo proposta pelo movimento essencialmente exclui educadores da discussão – estes precisariam apenas ser lembrados dos seus deveres. Sem entrar no mérito da causa, a inépcia estratégica aqui é extraordinária: consigo pensar em poucas coisas menos produtivas que um movimento engajado na área da educação poderia fazer do que cultivar antagonismo justamente com professores. Evidentemente, se queremos tratar dos dilemas éticos e pedagógicos relacionados à intolerância política em ambientes educacionais, educadores deveriam ser os primeiros a serem incluídos na conversa e mobilizados em torno disso.

Seria injusto, no entanto, colocar toda a culpa no Escola Sem Partido pelo caminho que essa discussão tomou. A verdade é que profissionais da educação também não deram respostas satisfatórias aos problemas que deram origem ao movimento. Na verdade, na maior parte das vezes sequer se reconheceu que tais problemas existem. Galvanizados tanto por simpatias ideológicas à esquerda quanto pelo esprit de corps docente, a estratégia adotada por educadores nesse debate foi, em geral, a da intransigência absoluta. Infelizmente, embora oposição ao Escola Sem Partido de certo tivesse a sua legitimidade, essa intransigência muitas vezes colocou para fora de cogitação encarar com realismo e honestidade os dilemas que giram em torno da hiper-politização da sala de aula, da falta de diversidade e tolerância ideológica no meio acadêmico e do tratamento hostil que minorias políticas muitas vezes estão sujeitas nas nossas escolas e universidades. Para muitos, enquanto o Escola Sem Partido estivesse vivo, sequer falar desses assuntos seria como dar munição ao inimigo.

Encontramos, no entanto, uma rara resposta heterodoxa no trabalho de Ronai Rocha, professor e filósofo da educação que conheci à ocasião de um congresso sobre liberdade acadêmica no IEA-USP no qual eu e ele palestramos. Até hoje, Ronai é um dos poucos profissionais de educação do país que se dispôs a levar à sério as denúncias e reivindicações do Escola Sem Partido e a explorar os dilemas educacionais relacionados. Seu livro, Escola Partida, é leitura obrigatória para quem deseja escapar dos chavões e lugares-comuns que tanto contaminaram esse debate. Percebe-se, para começar, que Ronai claramente está pensando como educador e não como advogado ou militante. Como ele próprio sugere no congresso do IEA-USP, seria muito mais produtivo tratar os casos denunciados pelo Escola Sem Partido como episódios de fracasso didático ou oportunidades pedagógicas perdidas. A abordagem jurídica, que trata esses casos como violação de direitos e deveres, tende a galvanizar o empenho de retaliar contra infratores. A abordagem pedagógica, por outro lado, tende a galvanizar esforços para melhorar a qualidade da nossa educação. Tendo a achar essa última proposta mais promissora. Por mais que ela não satisfaça a sanha imediatista daqueles lutando corpo-a-corpo nas trincheiras das guerras culturais, a meu ver ela é que tem mais chance de preparar professores e instituições de ensino para lidar com desafios oriundos da nossa cultura cívica disfuncional a médio e longo prazo. 

O caso de Ronai também ilustra bem os riscos e benefícios de tratar oponentes com um pouco de caridade intelectual. Os riscos reputacionais são bastante óbvios. Embora qualquer um que leia sua obra perceba facilmente que ele está longe de ser um apoiador ou admirador do Escola Sem Partido, a tentativa de avaliar o movimento como sintomático de um problema real (ao invés de tão somente um ‘delírio conservador’) foi recebida como sinal de traição por alguns colegas de profissão. O benefício, no entanto, também é claro. Ronai é um dos poucos educadores do país capazes de articular reflexões francas sobre um problema que, quanto mais ignorarmos, mais grave ficará: nossos professores muitas vezes parecem não estar preparados (e, portanto, não estão preparando seus alunos) para lidar com tensões político-ideológicas quando se manifestam em sala de aula. Igualmente grave é a falta de esforço sistemático por parte dos nossos profissionais de educação para elaborar um modelo de ‘melhores práticas’ nesse sentido.

Já argumentei em outros lugares (aquiaqui, e aqui) que ignorar a demanda para que esse problema seja abordado não é um meio muito eficaz de fazer a demanda desaparecer. Pelo contrário, é justamente isso que dá ‘munição ao inimigo’ e permite que o espaço seja ocupado por gente que não é do ramo. Podemos condenar outsiders aventureiros e as suas atitudes o quanto quisermos, mas a verdade é que se educadores estão insatisfeitos com as práticas e discursos que o Escola Sem Partido gerou, o melhor a se fazer seria eles mesmos se apropriarem das preocupações que geraram o movimento, reconhecer seus pontos de legitimidade e canalizá-la em direções mais produtivas. O trabalho de Ronai é uma prova de que isso é possível, e ambos os lados hoje investidos nesse debate tem algo a aprender com ele. De um lado, educadores podem começar a encarar com realismo e honestidade os dilemas que giram em torno da hiper-politização da sala de aula, da falta de diversidade ideológica no meio docente, e do tratamento tóxico que minorias ideológicas muitas vezes estão sujeitas no campus e em sala de aula. Do outro lado, aqueles já engajados nessas questões poderiam fazer um trabalho muito melhor em construir terreno comum com educadores. Já mencionei a dificuldade de construir esse terreno por meio do ‘martelo legalista’. Agora podemos tratar de outro entrave para o diálogo que o movimento, intencionalmente ou não, alimentou: a hiper-politização.

Embora se dispusesse a “combater a doutrinação ideológica, seja qual for a sua coloração”, são bastante claras as fronteiras ideológicas que se desenharam em torno do ESP: praticamente todos seus apoiadores são de direita, seus detratores de esquerda. Até certo ponto, isso certamente era de se esperar. Raramente detectamos intolerância em um determinado ambiente quando não é a nossa voz e as nossas ideias que estão sendo cerceadas. É natural, portanto, que manifestações de intolerância ideológica no meio educacional gerem reclamações mais frequentes do espectro ideológico minoritário nesse ambiente – isso é, da direita. Mas há sempre um preço a se pagar quando permitimos que nossa causa seja colonizada por uma bandeira política particular. Isso pode nos proporcionar meios eficazes de gerar mobilização e militância, mas a discussão inevitavelmente se torna permeada pelos lugares-comuns das guerras políticas contemporâneas. Isso não apenas estimula uma discurso antagônico, mas também limita a abrangência da sua coalizão. Atrai-se assim militantes aguerridos, mas pouco dispostos a buscar terreno comum com o outro lado.

Vale comparar esse fenômeno com que o cientista político Robert Talisse identifica em várias esferas de empreendimento social. No seu livro, Overdoing Democracy, Talisse argumenta que cada vez mais áreas da vida estão sendo saturadas pelo político. Isso significa dizer que estamos importando as categorias da divisão ideológica para várias atividades que, até pouco tempo atrás, nada tinham a ver com política. Na medida em que avança esse processo, cada vez mais os nossos gostos pessoais, hábitos de consumo, identificação religiosa, origem regional e outros aspectos da nossa identidade passam a sinalizar também a nossa identidade política. Talisse argumenta que conforme permitimos que nossa identidade política se sobressaia em relação aos outros papeis sociais que desempenhamos, conviver e colaborar com oponentes políticos em outras esferas sociais se torna cada vez mais difícil. Isso não apenas sabota empreendimentos coletivos de diversas naturezas, mas também contribui para um maior distanciamento e animosidade entre a população. A saúde da nossa cultura cívica, portanto, depende urgentemente da nossa capacidade de ‘colocar a política no seu lugar’.

Antes de voltar ao ESP, podemos falar de outro grupo que, a meu ver, também não colocou a política em seu devido lugar. Surgido em 2019, o Docentes Pela Liberdade é uma associação de professores que nasce em resposta às tensões políticas no campus buscando promover discussões que vinham tendo pouco espaço no meio acadêmico devido ao seu estigma político. No entanto, apesar do expresso objetivo de lutar por maior pluralidade ideológica no meio acadêmico, nota-se pouca pluralidade ideológica no movimento em si. As fronteiras ideológicas aqui novamente são claras e estritas: trata-se, evidentemente, de uma organização de docentes conservadores. Pessoalmente testemunhei docentes de matizes políticas diversas se interessarem pelos termos gerais da proposta inicial da organização (isso é, a promoção da tolerância, liberdade e diversidade ideológica na universidade ) – mas também testemunhei a decepção de muitos deles com o pedágio ideológico cobrado na porta de entrada. Apesar então desse movimento ter, assim como o Escola Sem Partido, gerado alguma mobilização em torno de discussões importantes e pouco aprofundadas no ambiente acadêmico, cristaliza-se mais uma vez a noção de que essas discussões vem de uma bandeira política em particular e que tratá-las é, em última análise, dar munição à direita.

É importante enfatizar: nada impede que profissionais da educação se organizem em torno das identidades políticas que lhes convém. Não estou os criticando por fazerem isso. Mas existe um outro tipo de demanda no ambiente educacional que organizações politicamente comprometidas dificilmente conseguirão atender. Como modelo de organização que de fato conseguiu ocupar esse espaço, costumo apontar para a Heterodox Academy, inaugurada em 2015 por professores universitários nos EUA com o objetivo de promover diversidade ideológica, discordância construtiva e a livre indagação no meio acadêmico. Já argumentei em outro lugar sobre a falta que faz uma organização desse tipo no Brasil, mas vale enfatizar aqui o quanto ela prova que esses objetivos podem (e devem) ser avançados por coalizões ideologicamente plurais. Enquanto dificilmente um professor de esquerda seria bem-vindo no Docentes Pela Liberdade, a HxA os convida – e com notável sucesso (a distribuição direita x esquerda entre membros da organização é notavelmente equilibrada, e a grande maioria dos seus membros fundadores se declaram de esquerda). O discurso da HxA é cuidadosamente moldado para apelar a valores caros à comunidade acadêmica como um todo, e não apenas a um pequeno nicho ideológico dentro dela. Graças a isso, e apesar de algumas batalhas perdidas, a sua causa obtém muito mais penetração no meio acadêmico americano do que o DPL conseguiu no brasileiro. Não há portanto, qualquer motivo para acreditar que esse tipo de iniciativa precise (ou que deva) ser colonizada pela direita.

A diferença de modelos institucionais também se sobressai na resposta que ambas as organizações tiveram a eventos que atraíram bastante atenção política em seus respectivos países. À ocasião da invasão de 8 de janeiro à Brasília, o DPL aproveitou a oportunidade para se pronunciar sobre o ocorrido. O texto começa ressaltando “o caráter acadêmico (e não político) da instituição”, mas logo em seguida explicita os posicionamentos da instituição sobre uma variedade de questões políticas – intervencionismo, auditoria dos votos, liberdade de manifestação e afins. Sem entrar no mérito dos posicionamentos em si, é de se perguntar se é esse o tipo de resposta que se espera de uma organização de ostensivo “caráter acadêmico (e não político)”. Cabe ressaltar que essa não foi a primeira vez que o DPL deixa claro, por palavras e ações, seu posicionamento sobre questões políticas – e é muito provável que, justamente por isso, se viu na obrigação de se posicionar nesse caso também.

Um modo alternativo de responder a eventos de natureza política – mesmo de magnitude sísmica como a invasão de Brasília – é dado pela Heterodox Academy à ocasião da invasão ao Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021. Ao invés de tomar posições políticas, a HxA aproveita a oportunidade para reafirmar os valores acadêmicos e apolíticos que norteiam a organização. Traduzo abaixo um trecho desse pronunciamento:

“Logo após a insurreição do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, muitos profissionais de ensino superior começaram a perguntar como podemos vincular proativamente nosso trabalho a questões políticas, contribuir para a democracia e ajudar os alunos a criar uma sociedade mais justa e inclusiva. […] Para nós, no entanto, a insurreição do Capitólio ressalta a necessidade de recuperar o sentido original da liberdade acadêmica como liberdade em relação a pressões políticas [ênfase no original]. Afirmamos que o trabalho acadêmico serve à democracia apenas quando está protegido das demandas daqueles cuja principal preocupação é a vitória nas disputas políticas e ideológicas cotidianas que constituem a democracia. […] Por mais tentador que seja responder à assustadora insurreição de 6 de janeiro banindo certas opiniões ou declarando fidelidade a certos movimentos políticos, isso seria sucumbir às tentações tribalistas que minam nossa busca pela verdade. A defesa do princípio da liberdade acadêmica sustenta a finalidade da universidade como uma instituição promotora da racionalidade e cuja credibilidade reside, assim como nosso Judiciário, na não-vinculação a grupos políticos ou ideologias. Pois assim como o ideal fundamental da Constituição dos Estados Unidos afirma que os cidadãos pertencem a uma única nação independentemente de sua etnia ou religião, o ideal fundamental da educação superior em nosso país sustenta que pesquisadores e docentes buscam e ensinam a verdade, entendida como o resultado derivado da aplicação rigorosa de método, independentemente de tais categorias identitárias ou ideológicas. […] Essa liberdade em relação à política [‘freedom from politics’] permite que nossa pesquisa e a educação superior enquanto instituição sirvam ao público, oferecendo resultados não-ideológicos de pesquisas que todas as partes, incluindo aquelas engajadas em lutas políticas, podem confiar.”

Evidentemente, falta às organizações e movimentos que surgiram em resposta às tensões políticas em ambientes educacionais no Brasil cultivarem os princípios institucionais referidas na declaração acima. Embora possamos – e frequentemente devamos – assumir posicionamentos políticos enquanto indivíduos ou membros de determinadas associações, também é preciso que alguns espaços se mantenham livres dessa pressão.

Voltando ao ESP, vale trazer atenção também à resposta que a Heterodox Academy teve a uma iniciativa que, em muitos aspectos, poderíamos considerar uma espécie de ‘Escola Sem Partido’ americana. O Professor Watchlist é uma plataforma que se propõe a “documentar e expor professores universitários que discriminam estudantes conservadores e promovem propaganda esquerdista em sala de aula.” A Heterodox Academy, embora reconheça que a plataforma “tem o direito constitucional de divulgar e criticar as palavras e ações de professores que considera ofensivas”, argumenta que a iniciativa é, de todo modo, “perniciosa e equivocada”:

“[Esse] projeto só vai agravar um problema que estamos tentando resolver na Heterodox Academy: professores e alunos têm cada vez mais medo de expressar e debater opiniões em sala de aula. […] Apelamos a todos que estão preocupados com o estado do ensino superior para que parem de inventar maneiras pelas quais os membros da comunidade acadêmica possam denunciar ou punir uns aos outros pelo que dizem em sala de aula. Quer a denúncia seja feita a uma autoridade do campus [ou] para a Internet em geral, desencadeando campanhas públicas de ‘cancelamento’ […], esses sistemas de denúncia encorajam todos a pisar em cascas de ovos. Esse tipo de clima de apreensão priva todos do vigoroso debate e das divergências que são essenciais para o aprendizado e pesquisa. Em vez de tentar desencorajar certas vozes no campus, acreditamos que a melhor abordagem é encorajar uma variedade de vozes – vozes heterodoxas – para que maus argumentos possam ser respondidos com bons argumentos e as ideias acadêmicas possam ser testadas pelas mentes mais fortes de ambos os lados.”

Existem, é claro, alguns contrapontos para essa mensagem – e vale notar que a própria HxA publicou um texto que expõe alguns deles. O autor do texto (ele mesmo um membro da HxA) argumenta que, embora louvável em sua intenção de preservar um discurso harmonioso, a resposta da HxA demostra certa alienação em relação à realidade vivida por estudantes e professores que divergem do consenso progressista na maior parte das universidades:

“Para estudantes conservadores, falar em sala de aula já o coloca em uma ‘watchlist’ informal na universidade progressista. Para professores conservadores, oferecer suas perspectivas tem o mesmo resultado. A ideia de um ‘professor watchlist’ é semelhante à lista negra informal que ocorre para professores conservadores. Embora essa iniciativa possa ter implicações desagradáveis para professores progressistas que sufocam a diversidade de pontos de vista, a liberdade de expressão é uma faca de dois gumes e os professores conservadores já vêm sentindo a ponta afiada da ideologia da lista negra por muitos anos.”

Embora seja válido ressaltar as perseguições e intimidações que minorias políticas sofrem no meio acadêmico, vale notar que, enquanto justificativa para um Professor Watchlist (ou um Escola Sem Partido), essa resposta segue claramente uma lógica retaliatória. E embora possa haver razão na denúncia que faz, há também um preço a ser pago quando incentivamos uma cultura de denunciação.

Quero concluir apontando uma ironia bastante relevante nessa discussão que sintetiza várias armadilhas que nossa cultura cívica precisa aprender a evitar. Notemos que apoiadores do ESP em geral se opõem ao preceito pedagógico (comum entre professores progressistas) de que ‘educar é um ato político’. Nesse sentido, acredito que eles dificilmente discordariam aqui das palavras de Ronai Rocha:

“É preciso dizer isso da forma mais clara possível: não é razoável negar que a escola é, em certas condições e sob um certo ponto de vista, um lugar de disputas políticas e sociais. Mas não é menos verdadeiro que a escola não pode ser vista, nos cursos de formação de professores, como um espaço de ação política em primeiro lugar. A escola não é, em primeiro lugar, um espaço de disputas políticas e ideológicas. A escola não é, em primeiro lugar, um espaço de lutas sociais. É preciso identificar essa lamentável confusão entre estar na escola, em primeira pessoa, como estudante, como professor, como administrador escolar, como pai ou responsável, e falar sobre ela em terceira pessoa, fazendo dela um objeto de teorias, à esquerda ou à direita, que mais confundem do que ajudam a criança a aprender a ler, escrever e contar.”

Ronai ressoa com Talisse a mensagem de que muitos dos papeis sociais que desempenhamos – seja como professores, alunos, administradores ou até mesmo cidadãos – podem ser contaminados e prejudicados pelas disputas político-ideológicas que colocamos em primeiro plano. A ironia, portanto, está no fato de que justo o Escola Sem Partido, movimento nascido da crítica à hiper-politização da sala de aula, não conseguiu evitar hiper-politizar a si mesmo. O movimento pede que educadores adotem o ethos implícito na fala de Ronai, mas evidentemente não refletiu o suficiente sobre como aplicá-lo a si mesmo. Sem essa reflexão, dificilmente surgirá terreno comum para discutir os problemas substantivos que nossa crise cívica está trazendo para dentro das instituições de ensino desse país.

Sobre a Biblioteca Prisma

Nossa coleção de artigos tem o intuito de informar e instigar discussões sobre como a polarização política se manifesta em ambientes diversos e os caminhos possíveis para evitar seus efeitos mais tóxicos. Buscamos trazer textos de autores brasileiros e internacionais que atuam nessa área de forma a disponibilizar seus insights para um público maior.

Imparcialidade não é uma exigência aos autores que contribuem para essa biblioteca. Textos podem trazer consigo lentes e predisposições político-ideológicas que não necessariamente refletem o posicionamento do Projeto Prisma sobre qualquer assunto em particular. Perspectivas diversas são bem-vindas contanto que busquem se harmonizar com os princípios do nosso projeto.

Entre em contato caso deseje contribuir para nossa biblioteca.