Por: Robert Talisse
Publicação original: “The need for socially distanced citizens“
Pesquise no Google a frase “como a democracia se parece”. Você obterá milhares de imagens de pessoas reunidas em público, expressando uma mensagem política. Essas imagens capturam uma característica central da democracia. Os cidadãos democráticos não são meros súditos do governo; eles são participantes iguais. Embora o voto seja um ato central de cidadania, a democracia não termina nas urnas. Depois que os votos são contados e as leis aprovadas, os cidadãos podem cobrar o governo. A ação pública por parte dos cidadãos é caracteristicamente democrática.
No entanto, este não pode ser o quadro completo da democracia. Os cidadãos devem ser ativos e reflexivos. Em meu novo livro, Sustaining Democracy, argumento que essas funções podem entrar em conflito. A ação política expõe os cidadãos a forças cognitivas que os tornam mais intensamente partidários, menos abertos à crítica e mais conformistas. Ou seja, o ativismo político pode enfraquecer a capacidade reflexiva dos cidadãos, prejudicando a democracia. Para preservar essas capacidades, os cidadãos às vezes precisam de distância social das disputas políticas. Eles precisam de ocasiões de solidão, momentos de reflexão política que sejam separados de suas lealdades e rivalidades políticas.
Uma crença popular entre professores, políticos e especialistas é que as disfunções da democracia sempre se devem ao fato de os cidadãos não exercerem suas responsabilidades cívicas. Consequentemente, há apelos regulares para uma participação democrática ampliada e, portanto, para currículos universitários e atividades cívicas mais abertamente ligadas à política do dia. A suposição é que o engajamento democrático é sempre uma questão de tomar partido nos debates políticos atuais. Pensa-se que nosso dever cívico consiste em manter a mente aberta e ouvir nossos oponentes de maneira justa, ao mesmo tempo em que adotamos uma postura firme.
De fato, a democracia precisa de cidadãos que possam assumir uma posição baseada em princípios, mas também escutar as diferenças políticas. No entanto, essas capacidades só podem ser cultivadas quando os cidadãos têm a oportunidade de pensar sobre a política de uma perspectiva que não esteja vinculada aos debates atuais. Se buscamos ouvir respeitosamente o outro lado, às vezes precisamos ouvir vozes políticas que não estão de nenhum lado, porque estão imersas em questões políticas que não são as nossas. A democracia muitas vezes se parece com massas nas ruas. Mas também parece um cidadão sentado sozinho, se debatendo com ideias que estão distantes da política do dia.
Polarização de Crenças e Coalizões Políticas
Volte aos resultados do Google. As imagens não são simplesmente fotos de pessoas engajadas em expressões políticas. Eles retratam grupos de pessoas expressando a mesma mensagem política. Também é assim que a democracia se parece: cidadãos agindo em conjunto. A democracia é um esforço de equipe. Para ter uma voz efetiva, é preciso se juntar ao coral.
A natureza coletiva da democracia cria tensão entre ação política e reflexão política. Isso se deve ao fenômeno cognitivo bem documentado conhecido como polarização de crenças (também chamado de polarização grupal). Na medida em que indivíduos interagem principalmente com outros que pensam de forma semelhante, eles normalmente tendem na direção de crenças e atitudes mais extremas. Assim, enquanto trabalhamos com nossos aliados, tendemos a nos tornar mais fervorosos em nossas crenças e mais intensamente partidários. Também nos tornamos mais inclinados a descartar os oponentes como irracionais, ignorantes e depravados. A hostilidade em relação ao outro lado aumenta e passamos a ver cada vez mais o que eles fazem como expressões de sua política equivocada. Eventualmente, aqueles que não compartilham de nossa política parecem indignos de confiança e perigosos, até mesmo como uma ameaça à democracia enquanto tal.
Na medida em que a polarização de crenças se acelera, as identidades partidárias ocupam o centro do palco: hábitos de consumo, identificação religiosa, estilos parentais, preferências estéticas e até mesmo convenções linguísticas tornam-se sinalizadores políticos. O partidarismo se expande para um estilo de vida – uma “mega-identidade” – e passamos a ver a nós mesmos e aos outros como definidos pela política. Enquanto isso, nossos ambientes sociais tornam-se cada vez mais politicamente homogêneos. Como já argumentei em outro lugar, a política satura o espaço social.
Quando a afiliação política se torna nossa identidade central, investimos mais nas diferenças percebidas entre nossos aliados e nossos inimigos. No entanto, nosso lado mais partidário é também mais conformista. As coalizões que passam por um processo de polarização de crença, portanto, tendem a se concentrar na coesão dentro de suas próprias fileiras. Isso os leva a se concentrar em detectar falsos aliados e punir desertores. A necessidade de definir padrões fortes para estabelecer membros autênticos do grupo necessariamente torna essas coalizões polarizadas mais hierárquicas.
Em suma, a ação política democrática aumenta nossa exposição à polarização de crenças, o que nos leva a demonizar aqueles que não compartilham de nossa identidade partidária. Acabamos vendo a democracia como possível apenas entre aqueles que são como nós. No entanto, democracia sem discordância político não é democracia!
Seguem-se mais más notícias. Embora a polarização de crenças nos torne mais ativos politicamente, ela também reduz o tamanho das coalizões porque leva os grupos a expulsar aqueles considerados moderados. Assim, a polarização de crenças torna as coalizões mais ativistas, ao mesmo tempo em que mina sua capacidade de serem democraticamente eficazes. A polarização da crença sai pela culatra, por assim dizer. Também põe em risco as relações cívicas com nossos aliados.
Como funciona a polarização de crenças
É importante ver como a polarização de crenças funciona. A explicação que defendo sustenta que ela é o produto da corroboração grupal de identidade. Membros de grupos com ideias semelhantes mudam para o extremo para afirmar sua participação no grupo para seus colegas. Eles expressam fidelidade às ideias do grupo de maneiras que devem causar uma impressão em seus aliados.
Isso explica o fato de que, embora a polarização de crenças seja um resultado previsível de discussões afins, a interação face a face não é necessária. A polarização da crença pode ser ativada por meio de canais altamente indiretos, incluindo gráficos, músicas, vestuário e sinalização pública. Simplificando, a polarização de crenças pode ocorrer simplesmente quando um indivíduo é levado a sentir que um grupo com o qual ele se identifica amplamente compartilha uma visão que ele defende. Mudamos para extremos quando sentimos que nossos colegas afirmam nossa identidade compartilhada.
Consequentemente, simplesmente estar na presença de aliados pode iniciar a polarização da crença e uma pressão para se conformar. Além disso, estar à vista de inimigos políticos também pode produzir esse efeito, pois tais encontros podem servir como uma ocasião para afirmar a lealdade de um grupo. Uma vez que o mundo está saturado de política, a polarização de crenças torna-se inevitável.
Gerenciando a Polarização de Crenças
Boa parte da teoria democrática propõe modos de interação política destinados a inibir a polarização de crenças. Mas há uma diferença crucial entre prevenção e cura, entre evitar mais polarização e reverter a polarização que já existe. Os Estados Unidos e outras democracias são fortemente polarizadas por crenças – a animosidade entre partidos supera em muito as diferenças políticas reais entre os cidadãos opostos. Embora precisemos conter a polarização de crenças, também precisamos de remédios.
Como a polarização de crenças é um subproduto da cidadania democrática ativa, ela não pode ser eliminada, mas apenas gerenciada. Podemos gerenciá-la mitigando seus efeitos mais destrutivos. Embora o fervor a animosidade crescentes sejam geralmente prejudiciais a uma democracia, ambos são resultados de uma característica mais profunda da polarização de crenças: a anulação da variação doutrinária entre aliados.
A polarização de crenças pode estragar as relações com nossos oponentes políticos, mas seus danos começam em casa. Isso faz com que as coalizões se fixem nas diferenças dentro e fora do grupo, levando-as a adotar requisitos cada vez mais exigentes para uma aliança autêntica. Grupos polarizados por crenças tornam-se assim mais homogêneos intelectualmente. A chave para mitigar a polarização da crença é expandir o senso de variação doutrinária permissível entre os aliados. Uma vez que se reconhece que desacordos significativos podem persistir entre os aliados, torna-se mais fácil se envolver razoavelmente com os oponentes.
No entanto, dados os níveis existentes de polarização, não se pode conseguir isso argumentando diretamente com os outros, sejam eles oponentes ou aliados. As condições já estão preparadas para iniciar a polarização da crença. Além disso, o objetivo não é simplesmente examinar a variação doutrinária que persiste, mas sim recalibrar o senso dos limites aceitáveis de variação.
A Necessidade de Distância
A tarefa pede ocasiões de distanciamento social. É preciso afastar-se das pressões para se conformar às expectativas partidárias. Assim, é preciso separar-se de seus aliados e adversários. É preciso solidão, distância do tipo que permite lidar com ideias políticas que não são pré-embaladas no idioma do partidarismo contemporâneo. É preciso encontrar ideias que possam provocar a reflexão ao invés do reflexo partidário. Isso permite uma reflexão que demonstra que o espectro da opinião democrática é mais amplo e profundo do que pode ser inserido nas categorias políticas de hoje.
Ao encontrar um leque mais amplo de ideias políticas, os cidadãos podem posicionar com mais precisão seus próprios compromissos e rivalidades e, assim, distinguir de forma mais confiável entre as disputas internas entre cidadãos democráticos e as lacunas intransponíveis entre ideais democráticos e várias formas de antidemocracia. É à luz desse quadro mais amplo que se pode navegar com mais sucesso pelas fissuras relativamente locais que nos dividem hoje.
Sou professor de filosofia política, então não é surpresa que eu pense que uma maneira de alcançar a esse distanciamento é lendo o pensamento moral e político escrito em outras épocas, dirigido a públicos desconhecidos e lidando com problemas desconhecidos. Aqui a chave é se envolver com essas obras como estranhas ao nosso próprio contexto, vê-las como remotas. Precisamos resistir ao impulso de pulverizar tudo no atual idioma político.
Essa proposta vai de encontro a correntes pedagógicas da moda que insistem na pertinência às questões sociais atuais e às vivências de nossos alunos. Esse tipo de relevância tem valor, é claro. Mas ela também envolve custos. Quando tudo se dirige às circunstâncias contemporâneas, perdemos de vista a contingência do nosso panorama político atual. Sucumbimos à tentação de ver nosso próprio momento político como eterno. Isso nos rouba a oportunidade de imaginar um futuro político em que nossas divisões atuais sejam obsoletas, não porque nossos oponentes foram derrotados, mas porque eles mudaram.
Consequentemente, minha afirmação não é que a reflexão distanciada deva ser politicamente irrelevante, mas sim que ideias e argumentos que são distantes dos de hoje têm uma relevância política própria. Ao ver o espectro da opinião democrática como mais amplo do que reconhecido pela nossa política contemporânea, podemos ser capazes de superar a tendência – cada vez mais visível no campus e em outros lugares – de tratar o próprio argumento político como caindo totalmente no lado “ativo” da cidadania, em vez de como servindo às nossas responsabilidades “reflexivas”. Quando o argumento político é considerado apenas mais um ato partidário, ele se torna uma mera tomada de posição que sinaliza fidelidade às nossas coalizões partidárias. Ele não muda mentes e não promove a compreensão de ninguém. No entanto, depois de se envolver com nomes como Aristóteles, Mencius, Hobbes e Jane Addams em seus próprios termos, é possível situar melhor os debates atuais e, assim, ver seus contornos e limitações.
Para ser claro, a reflexão distanciada não é uma cura para tudo. A animosidade partidária persistirá. Mas o tipo de distância que estou propondo visa mitigar a polarização de crenças, mantendo nosso pensamento político flexível. Isso pode não nos levar a conceder absolutamente nada aos pontos de vista de nossos oponentes, mas ao menos fornece uma melhor apreciação das diferentes maneiras pelas quais nossas próprias ideias podem ser formuladas e criticadas. Isso nos permite diminuir a temperatura nas divergências atuais, permitindo-nos ver pelo menos alguns de nossos adversários como críticos capazes, em vez de totalmente depravados. Também encorajará alianças políticas mais fortes e autenticamente democráticas, alianças que podem acomodar discordâncias e diferenças internas. Para resumir a ideia: como a polarização de crenças cria problemas para nossas rivalidades e alianças políticas, a tarefa de gerenciá-la recai sobre nós como indivíduos.
Como observo em Sustaining Democracy, estamos acostumados a pensar que a reflexão é um luxo, uma fuga de nossos deveres para com os outros. Da mesma forma, tendemos a pensar nas atividades cívicas como intrinsecamente públicas e observáveis por outros. Isso é um equívoco. A democracia precisa de cidadãos ativos e reflexivos, e modos essenciais de ação democrática podem minar nossas capacidades reflexivas. Quando enfatizamos demais a parte ativa da cidadania democrática, nos consignamos à política do momento, que é também a política da lacração, da troca de insultos, do cancelamento e da caricatura. Não por acaso, é também a política de conformidade e estreiteza intelectual. Em última análise, ela é democraticamente insustentável. Embora a democracia possa ser mais visível quando as pessoas saem às ruas, atos cruciais de cidadania não aparecem nos resultados do Google, porque só podem ser realizados na solidão socialmente distanciada.
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