A armadilha da certeza

Por: Ilana Redstone
Texto original: “The Certainty Trap

A solução para as disfunções do nosso discurso político não será encontrada censurando a ‘desinformação’, mas reconhecendo os limites profundos de nossas próprias crenças.

Em 2005, o escritor David Foster Wallace proferiu o que a revista Time chamou “o melhor discurso de formatura de todos os tempos”. O discurso de Wallace deu vida nova ao “principal requisito de [tais] discursos”, que é “falar sobre o significado de sua educação nas artes liberais, tentar explicar por que o diploma que você está prestes a receber tem valor humano real em vez de apenas uma recompensa material.” Ele explorou como os seres humanos criam e sustentam crenças e abordou as maneiras muitas vezes negativas de ver os outros que não compartilham dessas crenças. Mas talvez o mais importante, ele ofereceu uma razão pela qual esse é o caso.

Wallace conta a história de dois homens bebendo juntos em um bar em um canto remoto do Alasca. Ele descreve um dos homens como religioso, o outro como ateu. Eles estão discutindo sobre a existência de Deus. Na história de Wallace, o ateu diz:

Olha, não é como se eu não tivesse motivos reais para não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado com toda essa coisa de Deus e oração. No mês passado, fiquei preso longe do acampamento por uma terrível nevasca, e estava totalmente perdido e não conseguia ver nada, e estava 50 graus abaixo de zero, então tentei: caí de joelhos na neve e gritei “Oh, Deus – se Deus existe – estou perdido nesta nevasca e vou morrer se você não me ajudar.”

O homem religioso olha para o ateu e diz: “Bem, então você deve ser um crente agora… Afinal, aqui está você, vivo”. O ateu responde: “Não, cara, só o que aconteceu foi que um casal de esquimós passou por ali e me mostrou o caminho de volta ao acampamento”.

Wallace continua dizendo que seria fácil tirar a ‘lição-padrão das artes liberais’ dessa troca imaginária e simplesmente concluir que a mesma experiência pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes. A lição seria de tolerância, um lembrete de que não devemos declarar um homem certo e o outro errado. Mas Wallace vai além. Ele explica:

O cara não-religioso tem total certeza de que os esquimós que passavam não tiveram nada a ver com sua oração por ajuda. É verdade que existem muitas pessoas religiosas que também parecem ter uma certeza arrogante de suas próprias interpretações. Eles provavelmente são ainda mais repulsivos do que os ateus, pelo menos para a maioria de nós. Mas o problema dos dogmáticos religiosos é exatamente o mesmo do ateu dessa história: uma certeza cega, uma mentalidade fechada que equivale a um aprisionamento tão total que o prisioneiro nem sabe que está preso.

No enquadramento de Wallace, a intolerância que frequentemente testemunhamos (e da qual participamos) é um sintoma, não o problema real. É uma consequência inevitável da “certeza cega”. Cada homem na história de Wallace no Alasca se comporta como se sua posição merecesse ser mantida com confiança inabalável. Claro, tal certeza não pode ser correta nem para um ateu nem para uma pessoa de fé. Levar o pensamento de Wallace um passo adiante rapidamente nos leva a alguns dos maiores e mais controversos desafios que enfrentamos hoje.

No caso de questões espinhosas, a certeza pode ser uma armadilha invisível. E acontece que, ao reconhecê-la da maneira que Wallace sugere em sua história, podemos entender melhor e navegar por desacordos muito além daqueles que dizem respeito à existência de Deus. A certeza muitas vezes leva a uma tendência a desprezar ou desdenhar ideias, posições ou mesmo perguntas com as quais não concordamos – especialmente quando essas ideias, posições ou questões tocam em crenças que prezamos. Os problemas mais difíceis surgem quando as mantemos tão próximas que deixamos de perceber que se tratam de crenças pessoais.

Um desses problemas é a polarização política. O termo é vago, mas aqui estou usando-o para me referir a vários fatores inter-relacionados. Um fator é a forma como os principais partidos políticos têm adotado posições cada vez mais extremas, especialmente nos Estados Unidos. Outra é a tendência crescente de expressar desdém não apenas pela opinião com a qual não concordamos, mas pelo caráter moral da pessoa que a detém. Ainda outra é a exasperação que muitas pessoas sentem ao se comunicar por entre divisões em torno de problemas sociais difíceis. Isso é particularmente verdadeiro para problemas que abordam tópicos relacionados a identidade, intenção, justiça, igualdade e várias formas de preconceito — muitos dos assuntos mais delicados e controversos da atualidade. Um componente final em meu uso genérico do termo “polarização política” é a falta generalizada de diversidade ideológica que se tornou a norma em muitas instituições educacionais e culturais. É difícil exagerar as consequências negativas dessas tendências – e as preocupações sobre elas vêm de todo o espectro político (veja exemplos aqui e aqui). Em outras palavras, esse problema não é só de um ou outro – ele pertence a todos nós.

A magnitude do problema tem motivado várias pessoas a tentar encontrar soluções. Alguns veem a resposta como uma luta contra a informação falsa e a desinformação e uma reconexão com o que alguns podem chamar de verdade fundamental – o que é realmente real a respeito do mundo. Isso levou a uma proliferação de livros como: Disinformation: The Nature of Facts and Lies in the Post-Truth Era, After the Fact?: The Truth about Fake News, Social Media and the Post-Truth World Order: The Global Dynamics of Disinformation, Politics of Disinformation, and The Constitution of Knowledge: A Defense of Truth.

Outros veem a solução no estabelecimento de normas de civilidade no discurso. Embora esse foco também tenha gerado livros, seu impacto real foi no desenvolvimento de programas dedicados a esse objetivo. Exemplos incluem o National Institute for Civil Discourse da University of Arizona, o Padnos/Sarosik Center for Civil Discourse da Grand Valley State University e uma doação de US$ 150 milhões para a Johns Hopkins University para “tratar da deterioração do engajamento cívico em todo o mundo e facilitar a restauração de um discurso aberto e inclusivo que é a pedra angular das democracias saudáveis”.

Ambas as abordagens – combater a informação falsa/desinformação e promover o discurso civil – têm valor, mas nenhuma é profunda o suficiente para transformar nossas conversas. Isso não é uma previsão nem um julgamento; é uma observação. Essas abordagens não serão capazes de realizar mudanças significativas porque não podem, não importa o quão habilidoso seja o facilitador ou mediador que você tenha. Eles não podem porque não chegam à raiz do problema.

A luta contra a informação falsa/desinformação – um objetivo valioso – geralmente se baseia em duas suposições errôneas. A primeira é que respostas definitivas são conhecidas para os pontos em disputa. A segunda, relacionada à primeira, é que as pessoas certas para fornecer essas respostas podem ser identificadas e podemos concordar em quem elas são. Ambas as suposições muitas vezes estão ancoradas na Armadilha da Certeza – uma resoluta relutância em reconhecer a possibilidade de que podemos não estar certos em nossas crenças e afirmações.

Para entender as implicações de rotular informações como ‘informações falsas’ ou ‘desinformações’, precisamos apenas considerar casos como a resposta inicial a afirmações sobre o laptop de Hunter Biden ou a fonte do COVID-19. Sobre o primeiro caso, em 2020 vários grandes meios de comunicação descartaram como informações falsas/desinformação (veja exemplos aqui e aqui) a possibilidade de que um laptop encontrado com e-mails incriminadores pertencesse a Hunter Biden, filho do presidente Joe Biden. A certeza com que essa posição foi mantida levou ao silêncio de qualquer um que a questionasse publicamente – tanto que foi chamado de “o caso mais severo de censura pré-eleitoral na história política americana moderna”. Evidências recentes, no entanto, forçaram os mesmos veículos que invocaram esses rótulos a reconhecer a autenticidade do laptop. Da mesma forma, no início de 2020, a sugestão de que o COVID-19 poderia ter se originado em um laboratório na China foi descartada como bobagem infundada, e um incentivo para o racismo e a xenofobia. A certeza que levou a essa rejeição reflexiva retrocedeu pouco mais de um ano depois, mas o julgamento imposto às vozes outrora discordantes não deve ser esquecido.

Nada nessas reações era inevitável. Em vez de demarcar linhas falsas entre verdade e ficção, uma resposta mais inteligente e segura seria dizer algo como: “Essas afirmações exigem exame usando critérios de avaliação normais. Reconhecemos que nosso conhecimento e compreensão continuarão a evoluir.”

Por sua vez, a civilidade – também um objetivo digno – só pode ter sucesso quando há uma disposição entre os participantes de reconhecer que há mais de uma maneira racional de ver uma determinada questão. (Essa limitação também explica por que os livros que pretendem ensinar como lidar com conversas “difíceis” também não funcionam.) A Armadilha da Certeza torna essa conversa impossível.

Por exemplo, algumas das maiores controvérsias hoje ocorrem em torno questões de identidade racial e de gênero. Nesses tópicos, ambas as abordagens – combate à informação falsa/desinformação e foco nas normas de civilidade – são insuficientes. Digamos que uma pessoa tenha a seguinte opinião: “Acho que as pessoas exageram a significância do privilégio branco”. E outra pessoa vê essa posição como uma negação do racismo existente hoje. A promoção da civilidade convencerá a pessoa que vê a posição como uma negação do racismo a se engajar como um igual moral com aquele que a detém? Improvável. E os combatentes da informação falsa/desinformação serão capazes de convencer qualquer pessoa de que focar no privilégio branco é ou não o caminho certo a seguir? Improvável e, por motivos que abordaremos mais adiante, pode-se até dizer, impossível.

Em vez disso, sair da Armadilha da Certeza requer reconhecer três barreiras comuns e inter-relacionadas que nos mantêm dentro dela. Essas barreiras nos puxam para a Armadilha e, uma vez dentro dela, dificultam a saída. A Armadilha da Certeza nos diz que existem duas possibilidades para uma opinião da qual discordamos: ignorância ou motivações torpes.

No entanto, fora de suas paredes, surge uma terceira possibilidade que pode remodelar a forma como nos engajamos: alguém pode ter razões de princípio para a posição que ocupa. E quando nos recusamos a ouvir ou reconhecer esses motivos, não conseguimos nos comunicar. Às vezes, acharemos essas razões convincentes. Às vezes não vamos. E às vezes, quando tudo o que sabemos é a posição da pessoa, ainda não seremos capazes de dizer por qual dessas três motivações ela é movida. Mas permanecer dentro da Armadilha da Certeza sempre nos restringirá à lista mais curta, de dois itens.

Então, quais são as três barreiras que nos prendem a esta lista mais curta? A primeira é a Falácia da Questão Encerrada – caímos nela quando nos comportamos como se certas perguntas tivessem respostas definitivas e claras quando, na verdade, não têm.

Se você não tem certeza da frequência com que tratamos questões abertas como se tivessem respostas definitivas, considere o exemplo de nosso discurso atual sobre gênero, biologia e direitos dos transgêneros. Insistir que uma questão em aberto está fechada foi o tom de uma declaração de janeiro de 2022 divulgada pela Ivy League em apoio a Lia Thomas, a nadadora transgênero recordista da Universidade da Pensilvânia. A liga escreveu: “Nos últimos anos, Lia e a Universidade da Pensilvânia trabalharam com a NCAA para seguir todos os protocolos apropriados a fim de cumprir a política da NCAA sobre a participação de atletas transgêneros e competir nas competições femininas de natação e mergulho da universidade. equipe. A Ivy League adotou e aplica a mesma política da NCAA”. A implicação é que, como a NCAA (e, por extensão, a Ivy League) tem uma política, não restam dúvidas razoáveis sobre a questão. Mas uma questão não está encerrada simplesmente porque alguém afirma que está.

A segunda barreira é a Falácia da Intenção Conhecida – cometida quando nos comportamos como se soubéssemos os motivos de alguém. Considere, por exemplo, os debates atuais sobre a aplicação da teoria racial crítica nas escolas. Aqueles na esquerda política que insistem que o racismo ou o desejo de ocultar a história são as únicas razões pelas quais alguém se opõe ou se preocupa com o uso dessas ideias nas escolas estão se baseando nessa pequena lista de dois itens que existe na Armadilha da Certeza. O mesmo vale para aqueles na direita que defendem a proibição legislativa desse conjunto de ideias, afirmando que o objetivo é doutrinar os alunos. A Armadilha da Certeza não tem exclusividade política.

A terceira barreira é a Falácia do Conhecimento Igual – este é o nosso erro quando acreditamos que, se a outra pessoa soubesse o que eu sei (ou tivesse minhas experiências), ela pensaria o que eu penso. Este artigo de opinião no LA Times, escrito por um psicólogo social, exemplifica bem isso. O autor escreve: “Muitos americanos têm dificuldade em reconhecer a magnitude e a persistência da desigualdade racial porque, psicologicamente, resistimos a essas verdades”. Até aí, tudo bem, pois ele destaca a importância de estar informado. Ele então segue com: “A menos que os americanos entendam e reconheçam a desigualdade como um fato, não seremos capazes de construir o consenso político necessário para uma mudança real”. Aqui, ele caiu na terceira falácia. Providenciar a todos a mesma informação sobre a magnitude da desigualdade racial construirá o consenso a que ele está se referindo? Eu afirmo que nunca construiu e não construirá.

Com certeza, nada disso significa dizer que a informação não tem valor nenhum ou passar pano para a ignorância. Significa simplesmente que, como interpretamos evidências e experiências de maneira diferente, ter as mesmas informações ainda não colocará todos na mesma página.

Reconhecer os fenômenos que apresentei aqui – a Armadilha da Certeza, a Falácia da Questão Encerrada, a Falácia da Intenção Conhecida e a Falácia do Conhecimento Igual – pode ter implicações significativas. Esse reconhecimento nos permite rotular o comportamento e responsabilizar os outros e a nós mesmos por suas consequências. Por exemplo, você pode se imaginar dizendo a alguém (ou a si mesmo): “Esta reação é o resultado da Falácia da Questão Encerrada”, e explicando o porquê, ou dizendo a alguém que “Você não pode reclamar sobre a guerra cultural sem reconhecer seu papel nela, através da perpetuação dessas falácias.” Ou: “Ao continuar nessa linha, sabendo que está cometendo essas falácias e não mudando seu comportamento, você é quem está alimentando a polarização”.

Compreender esses modos de discurso nos ajudará a abordar as muitas questões amplas que giram em nossa cultura hoje. Os debates sobre questões transgênero são um exemplo ressonante, já que os debates se intensificam sobre se mulheres trans devem participar de esportes femininos ou se é certo ou errado dar bloqueadores de puberdade a meninas ou meninos adolescentes com base no que às vezes pode ser uma disforia de gênero passageira. Não sabemos as respostas para essas perguntas. E comportar-se como se o soubessemos – tratar as pessoas como se as respostas fossem conhecidas e óbvias e, se elas veem as coisas de maneira diferente, elas estão negando a realidade ou motivadas pelo ódio e fanatismo – é permanecer dentro da Armadilha da Certeza.

Sair dessa armadilha fornece um caminho baseado na curiosidade e uma reflexão mais precisa do que sabemos uns dos outros. É um caminho que pode nutrir abertura e construir confiança. E, finalmente, é um caminho que pode transformar a forma como nos comunicamos uns com os outros de maneiras que absolutamente não terminam em tópicos políticos. Melhores soluções, melhor comunicação e conversas mais abertas estão ao nosso alcance, se estivermos dispostos a tomar esse caminho.

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